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Porque A Arte Somos Nós

No outro dia, Gregório estava na sala que fora de Carla e, inspirado, sacou da sua pasta livros do romancista Jonathan Franzen: “As Correções“, “Tremor“, “Liberdade” e “Como Ficar Sozinho“. Perguntado se aquelas obras constavam da lista de livros obscuros do mês, o professor disse que não. Esclareceu que iria dar uma aula sobre a importância da leitura e do estilo romance, e qual era a mágica e atrativo ao ler uma história fictícia de cerca de 600 páginas. Isso em detrimento às facilidades tecnológicas e à rapidez que as pessoas buscavam no seu dia-a-dia, ao ficarem conectadas o tempo todo, tudo muito fácil e ligeiro. Proclamou:

— Jonathan Franzen é um escritor estiloso, completo. Consegue nos entreter e prender em suas histórias. O prazer oriundo disso é um orgasmo sexual. Sei que muitos de vocês não tiveram um orgasmo ainda – risos generalizados – mas a sensação ao ler os livros de Franzen é bem melhor. Posso estar exagerando um pouco, mas preciso puxar a brasa para a minha sardinha. Convido-os a saírem do mundinho de comodidades e fast foods. Vamos tentar buscar essências ao invés de aparências, mergulhar fundo para sairmos da superfície do mundo e das coisas, que tal?

— Mas quem lê livros desse tamanho? – perguntou um aluno.

— Muitos leem. Ainda. Muito bem, Franzen é um bestseller mundial,  seus livros são traduzidos para diversos países e fico cá imaginando os talentos de cada um de vocês. Já tive a feliz oportunidade de corrigir algumas redações e sinto que poderão sair desta sala grandes escritores.

Um riso generalizado apontava para duas alunas e dois alunos diferenciados no meio, exatamente pelo apreço que tinham pela leitura. Sem discriminar, Gregório continuou:

— Sim, vocês já sabem quem são os talentos daqui. Também penso assim. Mas sei que cada um de vocês carrega um talento nato e só precisam saber disso. Observem bem: perdemos uma grande colega e agora podemos aprender uma lição: só temos o dia de hoje para mudar as nossas atitudes em relação ao mundo e às coisas. Pensar diferente, o tal “pensar fora da caixa”. Vamos compreender que podemos e devemos ir além, sonhar. Isso para escaparmos do vazio. Uma colega de vocês me ensinou isso, e devo isso a Carla. Não julguemos, não somos perfeitos e nem sabemos os reais motivos para os atos que praticamos na vida. Fora as gozações peculiares características de todos vocês, quero que saibam que devoto a vocês o respeito por entender que atravessarão dias difíceis, mas sei que, ao mesmo tempo, conseguirão seus objetivos. Bem, mas eu falava de Jonathan Franzen. Não, não pode ser colocado na categoria de um livro obscuro, se bem que vocês sabem que essa classificação que demos foi respeitosa e lisonjeira. Mas isso não cabe aos livros desse escritor. Pois ele é iluminado, brilhante, diferenciado. Não farão nenhum favor se lerem o livro dele. Na verdade, receberão um favor lendo as histórias de personagens tão bem elaborados: ele fala da vida, das pessoas como elas são, o heroísmo aí é que são pessoas de carne e osso com as suas pulsões, desejos, medos, frustrações, sonhos, amor, ódio, e tudo que compõe o seu humano. Os capítulos são longos, extensos, mas permitam-se viajar pela trama, se percam, se integrem à história.

— Nossa, professor! Você é mesmo fã do cara! – falou uma aluna de óculos.

— Sou sim. Faço questão de me refugiar nos seus escritos quando a vida parece absurda e sem sentido, ou seja, quase na totalidade dos dias.

— Me empresta?

— Boa, Andreza! Só pelo pedido vai ganhar o livro. Escolhe um e mergulhe.

E assim Gregório distribuiu os livros, reverberando as próprias palavras e se viu cindido em dois. Ao mesmo tempo em que propunha um trabalho de grade curricular, pensava no bem que a literatura proporciona e na fuga decorrente disso. Uma oportunidade para sair do mundo e imaginar, sonhar. Desde criança, fora assim: mesmo com medo do Lobo Mau, da Cuca e do Minotauro de Monteiro Lobato, tivera a chance de viajar pelo mundo encantado do escritor de Taubaté e com Julio Verne nos seus livros de fantasia e aventura. E viajou de submarino, balão, foi correio do czar, viajou ao centro da Terra e deu a volta ao mundo. Depois os romances de capa e espada: foi mosqueteiro e companheiro de Porthos, Athos e Aramis, com a companhia de D’Artagnan, presenciou o homem da máscara de ferro com Alexandre Dumas e foi Luciano de Rubempré em “Ilusões Perdidas“, imaginando a Paris do século XIX. Mergulhou nas dores da alma lendo Dostoievski, foi a Praga através dos escritos de Kafka, tornou aos cafés parisienses na companhia de Simone, Camus e Sartre e continuava viajando ainda hoje. Com Franzen conhecera os hábitos, modo de vida e burocracia dos Estados Unidos, que possuía características próprias. Esse perder tempo com a leitura o aliviava de suportar a intensidade das horas e dos dias, no absurdo da existência de pessoas que, somadas, pertenciam a um bando vazio e insone. Pensava em Carla e na sua constante pergunta (Qual o sentido disso tudo? Como suportar tudo isso?), e ele mesmo não encontrava respostas. A literatura era um refúgio seguro e paradisíaco. Algo extraordinário para combater o ordinário. Sopesava os escritos extensos de Marcel Proust com a sua profusão de detalhes. Minuciosamente, propositalmente intenso. Debochado a princípio por um editor que afirmou que os escritos dele não encontrariam razão para vir ao mundo, hoje Proust era um clássico e o editor que o recusou um ilustre desconhecido. Gregório divagava, pressentia e bendizia a sorte de lecionar literatura, pois, para além do deleite, tinha que trabalhar profissionalmente com os textos, planos de aula, e que bom que não era um professor de Biologia! Pois, investigando os escritos, sopesando cada sentença e elaborando espectros de seus autores, ia fazendo um mosaico de ações, incompreensões, injustiças, medos, vitórias, dramas, sensações, vozes, enfim, tudo o que compõe o ser humano. Sentiu-se verdadeiramente feliz ali naquele momento! Era um felizardo por proporcionar a jovens um aprendizado, mesmo que às vezes a coisa se assemelhasse a lançar sementes no asfalto. Mas estava cumprindo a sua parte, fazendo o seu papel. Ele se sentia valorizado e importante, pois trazia à baila escritos, textos, autores e formas de pensamento e sentimento.

Franz Kafka

Deu o sinal e a turma quase se esqueceu do fim. Gregório teve uma sensação de forte presença, olhando para o fundo da sala, onde Carla se sentava, pressentiu-a ali, com o sorriso irónico e debochado, meio de enfado com algumas besteiras ditas pelos colegas. Carla era a mais adulta ali, ela, sim, era a extemporânea, a que saíra da forma. Greg riu ao se lembrar de suas declamações, onde empregava um tom de voz e postura que fizera Greg sugerir um curso para atriz. Sem vergonha de se expor quando falava do amigo Nietzsche, essa sublime influência. Greg presenteou os outros três adeptos de leitura com os livros de Franzen. Pegou suas coisas, colocou na pasta e se retirou. Mais uma aula dali a pouco.

Joel não trabalhava. Ficava a pensar o dia inteiro. Licenciado em Filosofia, mergulhara tão fundo nas obras dos grandes filósofos que perdera o senso prático nas coisas terrenas. Dependia de mesada da mãe, que trabalhava como faxineira nas casas dos abonados no Barro Preto; ficava a vadiar e a interrogar o senso comum das pessoas. Criticava a tudo e a todos. Criara um perfil falso no Facebook e, como ato de protesto, só postava coisas cult. Claro que não tinha muitos amigos, nem reais nem virtuais, também pudera! Permanecendo isolado, poderia julgar sem causar desconforto. Estava às voltas com a publicação de um livro de metafísica, onde apontava falhas nos pensamentos de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant e Hume. Estava há mais de cinco anos masturbando o manuscrito. Manuscrito mesmo. Para ser diferente, não digitava no computador, queria a sensação de ser um trabalhador braçal fazendo o trabalho duas ou mais vezes e, para ele, a questão era mais ou menos assim: “Se a gente pode dificultar as coisas, para que facilitar?”. Conhecera Gregório num simpósio de filosofia e, apenas pelo facto de se sentarem na mesma fila, trocaram ideias. Joel criticara (mas não revelava ao amigo) o emprego do amigo vendendo os seus conhecimentos, o seu tempo e disposição para uma escola de elite que empastelava o conhecimento. Claro que ele proclamava isso através do seu rol de preconceitos. E sempre imaginava: como o sujeito pode se dedicar à filosofia com a rotina estafante de salas de aula, e com alunos que não desejam conhecer? Onde ficaria o tempo para escrever, pensar suas próprias ideias etc.? Ele não se venderia ao sistema, isso nunca. Vivia com o parco ordenado da mãe; claro que esse cinismo cobrava o seu preço. Sobrevivia com um sapato furado, mas tão furado, que pedaços de jornal completavam o solado. As roupas eram rotas e estava precisando fazer um tratamento dentário, mas isso era um luxo que passava ao largo de suas possibilidades. Vivia perdido no mundo das ideias de Platão, tentava classificar as coisas como se fosse um cientista a la Aristóteles, interrogava o cogito cartesiano, a ética em Spinoza, a quebra das ideias inatas proposta por Kant após acordar do seu sono dogmático proposto pelo empirismo de Hume e Locke, queria formular a sua própria história da filosofia como Hegel e pesquisar a mente humana como Freud, Nietzsche e Schopenhauer. Enfim, a sua cabeça era uma barafunda de ideias e preconceitos. Sentia-se deslocado no mundo e das coisas. Nunca investigara os seus reais sentimentos, escamoteara isso, pois ter que pagar um psicólogo ou psiquiatra era um luxo a que não se podia permitir. Vazio. Ele sim, vazio. A mãe estranhara a apatia do filho e, conversando com poucas madames que ainda tinham um pingo de humanidade, e somente quando certas conversas eram permitidas, ouvia delas conselhos que iam de internamento, “Você não devia permitir que o seu filho fizesse essa faculdade idiota. Essa coisa de filosofia mexe com a cabeça e com os juízos!” etc. Sua mãe se culpava às vezes e conversar com seu filho era impossível, pois Joel sempre  a interrompia com frases curtas: “Isso é um cliché!” (e ela não sabia o que era isso, mas não devia ser algo bom); “Mãe, a senhora está inserida no sistema capitalista. Limpa a casa dos capitalistas e recebe dinheiro deles, não tem dimensão da complexidade das coisas. A senhora alimenta o sistema!”. A mãe era de pouca instrução, mas pressentia que talvez o filho tivesse razão: “Não posso discutir com ele. Meu filho é estudado e muito inteligente!”. Joel pediu cinquenta reais, a mãe deu e foi preparar o jantar, na casa onde só moravam os dois. Durante o jantar (e não pensem que estavam na mesma mesa, estavam sim, sentados nos sofás velhos da sala de TV) a mãe ousou sugerir ao filho um trabalho.

Arthur Schopenhauer

— Meu filho! Não faço caso do dinheiro que te dou, mas quem sabe…

— Lá vem a senhora de novo com esse papo de trabalho, mãe. Não. Não e não! Mil vezes não! Estou me preparando para ser um grande filósofo e tenho que ter tempo livre, para pensar direito nas coisas.

— Longe de mim afirmar o contrário, meu filho, mas…

— Nem mais e nem menos. Decidido: não vou trabalhar e pronto. Imagine eu com a minha cabeça trabalhando de garçom atendendo a clientes idiotas e que só sabem foder com os outros.

— Filho, olha a boca! Palavrão é feio. Falei por falar.

— Tá bom, mãe! Mas não fale mais, não me pressione.   

— Tá bom, meu filho. Foi à lotérica pagar as contas?

— Ih mãe, esqueci! Desculpe-me. Mas estava com a cabeça em outras coisas. E também me levantei ao meio-dia.

A mãe entendeu. Seu filho era assim mesmo. Distraído. Distante. Perdido em um mundo só dele. Ela mesma iria à lotérica na hora em que saísse do trabalho, no dia seguinte. Ofereceu sobremesa ao filho, este aceitou e, pegando o pratinho, comunicou à mãe que iria para o quarto, para continuar pensando sobre as suas ideias e o seu livro. Sua mãe entendeu.

Diego chegou em casa e cumprimentou Fred e Deborah. Subiu ao quarto rapidamente e nem passou no quarto ao lado, de Fernando. Fechou a porta atrás de si e ligou o notebook. Preparou o vídeo e ficou a um clique de publicar Luísa Gates no seu momento mais íntimo. Sorriu. Levou o dedo médio na tecla enter, passou o dedo sob a superfície da tecla, mas não pressionou. Deixou o computador, desceu e abraçou sua mãe. Seu pai estava às voltas com a leitura de uma revista semanal, aparentando preocupação com a delação premiada de um figurão da capital.

— Mãe, como a senhora está?

— Melhor, filho! Melhor!

— Passou a chateação por conta do vídeo?

— Recebi muito apoio, meu filho! Tenho amigos de verdade que gostam de mim. Recebi mais apoio que crítica.

Fred abaixou a revista e comentou, fitando os dois:

— Teve excesso da garota, mas não posso deixar de lhe dizer, Deborah: devo te apoiar, te apoio, mas às vezes você exagera. Se expõe demais. Entenda, nem todas as pessoas são boas nesse mundo. Você é uma mulher inteligente!

— Sei Fred, sei! Fico feliz pelo seu apoio, mas quando se tem essa doença, é bom receber apoio emocional. Recebo de vocês, isso é bom, mas receber a solidariedade dos outros é recompensador. Às vezes as coisas saem do trilho, mas como disse: tenho mais pessoas que rezam por mim do que pessoas que me querem o mal.

— Vou subir de novo. Já comi fora – revelou Diego.

— Outra vez Mc Donald’s?

— Só hoje, mãe!

— Fica comendo essas porcarias e aposto que bebeu aquele xarope açucarado que eles chamam de Coca e comeu frituras, com aquelas batatas cheias de gordura.

— Mãe, estou bem! Prometo não comer mais nenhum sanduíche por quinze dias.

— Tá bom! Vem cá dar um beijo na mãe.

Beijaram-se e ele se despediu. Deborah perguntou ao esposo:

— Leu a matéria da revista? Lindo Arnoud não é seu cliente?

— Li, media sensacionalista. Não apuram nada e já saem publicando.

— O escritório está acompanhando?

— Claro, amor! Somos os advogados dessa gráfica. Mas isso não passa de especulação.

— Algo com o que nos preocupar?

— Quê isso, amor? Lógico que não. Você sabe que não costumo falar de trabalho aqui em casa.

— Sim, amor, sei disso.

Diego fechou o quarto, sopesou a decisão e investigou a si mesmo no auge dos seus 15 anos. Não era uma pessoa má. Esperava não sofrer conflito nenhum ao executar o seu plano de vingança. Teclar ou não teclar. Uma decisão que poderia mudar uma vida e tudo ao alcance de um simples toque dele na tecla enter. Teclar ou não teclar? Eis a questão. No Facebook, Luísa compartilhara no seu mural fotos suas e poses das mais divertidas. Diego estranhou. Luísa não sabia quem ele era. Ele era apenas um perfil falso, isso iria dar merda, sabia disso, chupara os peitinhos da menina e a pusera para chupar. Tudo sem gosto e emoção, pois sentia que a garota era um zumbi que vivia a vida a postar e postar e postar. Investigou a má fé e não conseguiu se decidir. “Pois bem, não tenho que decidir isso hoje. Há tempo para tudo e não sei o que está acontecendo comigo. Não sou uma pessoa ruim! É difícil ser frio a ponto de se transformar em outra pessoa que não nós mesmos!”. Amanhã decidiria. Desligou o computador, tomou banho e ouviu Coldplay.

Marcelo Pereira Rodrigues

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