Luís de Camões foi um dos impulsionadores da chamada “medida velha”, expressa em redondilhas (menor ou maior). Por outro lado, a dita “medida nova” praticou-a na poesia épica d'”Os Lusíadas“. Ademais, nos seus sonetos, o escritor consegue imergir em temas substanciais como o amor, a tristeza, a saudade, a religião e a própria Natureza. Mais concretamente, há uma procura interior em, através das suas paixões não correspondidas – resultantes numa angústia profunda – “cantar” a sua dor, repleta de sofrimento e de depressão.
No meio de toda esta cultura sentimental, importa frisar que Camões recebeu uma substancial influência de Petrarca, poeta italiano, mas também uma forte vertente clássica por parte, por exemplo, de Platão. E toda esta conexão ideológica é visível na sua poesia de elevação sentimental e de interioridade analítica, que racionaliza e dramatiza o amor de uma forma lógica. Tudo isto leva Camões a cair em paradoxos e contradições entre ser e ter e, mais concretamente, numa interrogação interminável: viver para amar ou amar para viver?
A melhor maneira de conhecer a lírica de Camões é através da análise ao soneto de Camões de incipit “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.
O tempo cobre o chão
de verde manto,
Que já coberto foi de
neve fria,
E enfim converte em
choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
O tema deste soneto é a mudança, uma temática frequente na Renascença (tempus fugit – “o tempo voa”), já que ao longo do poema o sujeito lírico refere várias transformações verificadas em si e no mundo. O sujeito poético reconhece que esta “mudança” engloba tudo: sentimentos, a nossa confiança, o carácter e, claro, os valores humanos. E elas são irreversíveis, sem retorno.

No entanto, se as mudanças na Natureza (no seu processo de renovação) assumem um sentido positivo, o mesmo não acontece com as alterações de pendor negativo na vida do sujeito lírico. Há a realçar que, na opinião do poeta, até a maneira de mudar mudou. Desta forma, a mudança exerce-se, quer no mundo em que o Poeta se inclui, quer nele próprio. O eu poético demonstra o seu mais sincero espanto por já não se conseguir reconhecer no que vai mudando, uma vez que até a própria mudança está a modificar-se.
Além disso, a ideia da passagem do Tempo, fundamental na lírica de Camões, é inexorável – na medida em que dela ninguém escapa e de qual todos somos “vítimas” – demonstra, precisamente, que as pessoas (mundo interno) modificam-se consoante as coisas (mundo externo) vão mudando e, desta forma, os nossos interesses e sentimentos (personalidade) também evoluem.
O advérbio Continuamente (v. 5) reforça, precisamente, a ideia da mudança ininterrupta do mundo, incontrolável e com tendências negativas, mas também a importância da memória. Da tristeza não há saída nem alternativa. Como resultado, das memórias más ficam as mágoas, e das memórias boas as saudades. Assim, o Mundo tem “novas qualidades” (v. 4), “diferentes em tudo da esperança” (v. 6) e, portanto, os efeitos da mudança na Natureza são positivos, uma vez que o tempo cobre “o chão de verde manto” (v. 9), substituindo a “neve fria” (v. 10) do Inverno.
Por outro lado, as repercussões dessa mudança no sujeito lírico são negativas, pois a mudança transformou o “doce canto” em “choro” (“e, enfim, converte em choro o doce canto” – v. 11). Daí a tristeza e a amargura do sujeito poético, provocadas pelas saudades desse tempo passado.
Importa realçar que este soneto tem uma vertente, mais que lírica, acima de tudo filosófica – algo que é bastante caro aos renascentistas –, patente, precisamente, na ideia de Heráclito, de que o mundo é transitório: o sujeito poético apercebe-se que as coisas mudam e, assim, depara-se com a multiplicidade e dinamismo do universo. Neste poema temos uma quebra quanto à felicidade e harmonia e, portanto, é o pessimismo que domina a aura poética (“do mal ficam as mágoas na lembrança, / e do bem (se algum houve), as saudades” – vv. 7-8).

Desta forma, podemos dizer que a tónica deste soneto se prende com demonstrar a/o instabilidade/desconcerto do mundo, ou seja, esclarecer que, enquanto as mudanças da natureza assumem uma tendência previsível (por exemplo, as estações do ano), as mudanças vividas pelas pessoas, além de, muitas vezes, não serem antecipáveis, estão invariavelmente associadas à passagem do tempo.
Assim, este contraste evidente de conceitos e ideias confirmam e dão substância ao estado emocional de conflito do eu lírico, estado esse de desagregação, profunda tristeza e mágoa, imortalizados, precisamente, pela ideia de que o universo é dominado pelos paradoxos e pela mudança, que espoletam uma perplexidade e um labirinto interior (sem rumo).
Por fim, sobressai no sujeito da enunciação uma realização: a de que custa mais aceitar a forma como as coisas mudam, do que propriamente aceitar a mudança (“que não se muda já como soía” – v. 14). Neste sentido, há a mais clara constatação de que a inconstância na inconstância do mundo o desorienta (isto é, a mudança da própria mudança). Assim, o sujeito poético, pessimista e atónito para com a sua realidade – que não compreende –, sente-se completamente ludibriado pelo destino e pela fatalidade (fatum).
Desta forma, importa realçar que nos deparamos com um soneto “perfeito”, isto porque temos uma distribuição, quanto ao seu conteúdo ideológico, estruturalmente sem falhas: na primeira quadra, o sujeito poético apresenta a ideia a aprofundar: a mudança; na segunda quadra, temos o suporte da tese; no primeiro terceto, surge a confirmação, no qual se concretiza, precisamente, a ideia apresentada anteriormente, patente nos sentidos opostos das mudanças que operam na Natureza e no sujeito; e, por fim, no segundo terceto, temos a conclusão, através da qual se faz a síntese da poética do soneto: até a própria maneira de mudar mudou.
Ou seja, a mudança mais surpreendente é a de que já não se muda como era costume, isto é, verifica a mudança da própria mudança.
Camões dá-nos, precisamente, esta multiplicidade, que devemos apreciar com a beleza dos seus poemas e com toda a sua pluralidade lírica que tanto eco faz na nossa Literatura.
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Tiago! Muito bom o seu artigo. A partir de um verso, você interpreta várias possibilidades. Do tipo de texto que a gente tem que ler mais vezes para nos apercebermos de outras nuances. Parabéns por trazer à baila Camões.
Muito obrigado, Marcelo. Sempre a tentar elevar!