Quando o editor d’OBarrete, Diogo Vieira, me sugeriu escrever um texto sobre Martinho Lutero (1483-1546), aceitei de pronto, tentando expandir o meu ponto de vista do enunciado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), seu conterrâneo, que detestava o sujeito dos cascos ao focinho. Afirmava o autor de “A Gaia Ciência” que Lutero havia inventado o luteranismo, “o mais sujo dos cristianismos“.
Filho pobre de mineradores na cidade de Eisleben, o menino Lutero nasceu na área rural e o seu pai vislumbrava para ele a carreira de advogado. Com muita luta e sacrifício, o jovem conseguiu ingressar numa universidade e reza a lenda que foi durante uma tempestade, com raios e trovoadas, onde se viu numa situação enrascada e rogou aos céus pela sobrevivência. Estava no campo aberto. Nas suas súplicas, rogou aos céus e comprometeu-se a ser um fiel servidor de Deus, tornando-se monge. Salvo pela “Providência”, largou o Direito (para desgosto do pai) e migrou para a Teologia. Destacou-se pelo brilhantismo e firmeza das suas convicções.
Dentro da Igreja Católica Apostólica Romana, começou a perceber a desfaçatez de muitas das suas práticas. A simonia e a venda de indulgências, padres que se esfregavam com prostitutas, corrupção por todos os poros o fizeram ver a hipocrisia da Santa Sé e entendia Roma como um verdadeiro esgoto aberto, com concupiscências e imoralidade. Questionador contumaz, começou a elaborar teses, já entranhado nas Sagradas Escrituras e protestou, afixando na porta de uma Igreja as famosas “95 Teses“.

Interessante meio de comunicação, como afixar cartazes em postes atualmente, os escritos ganharam ampla divulgação. Aos poucos, leitores mandavam imprimir (sabemos o quanto custoso era imprimir naquela época) e um detalhe chamava a atenção naquele período: as missas eram proferidas em latim e o acesso da população às Escrituras era restrito, uma vez que não haviam traduções para os locais.
Nem preciso afirmar a polémica que foi para a Igreja, sob o comando do papa Leão X essa impertinência. Lutero foi chamado a retratar-se e a abjurar das suas teses, mas na audiência de conciliação sobressaiu-se mais um advogado de acusação, ele próprio. Não tinha jeito, o cisma já estava posto e apenas o facto do nosso protagonista estar longe de Roma o salvou da fogueira. Mas foi considerado herege e teve que ficar um tempo fora de cena, excomungado.
Aproveitou o exílio para realizar uma tarefa louvável: traduzir a Bíblia para o alemão e contava com admiradores que fizeram circular as suas ideias. Estava lançado o protestantismo, por alguns denominado luteranismo, e as suas ideias se espalharam por países nórdicos tais como Dinamarca, Noruega e Suécia.

A implicância de Nietzsche por Lutero é expressa em “O Anticristo“. Entendia ele que com o Renascimento a Igreja estava a conhecer o seu declínio, e que seria uma instituição fadada ao fracasso. Com o levante de Lutero, a Igreja reuniu-se e se soergueu por meio da Contrarreforma, de modo a combater a Reforma do monge indócil, e o resto todos nós sabemos. Nietzsche sempre entendeu que não deveríamos dar à causa inimiga o status de perseguida.
A partir do protesto de Lutero o cenário estava posto: as guerras religiosas passaram a ocorrer com muita frequência e ceifaram um grande número de vidas. O cenário estava muito obscuro, necessitando de um Iluminismo que viria mais tarde. Confesso que não li as “95 Teses”, por completa falta de interesse, mas a ideia geral captei. Alguns outros cismas ocorreriam e quem sabe um dia me arvoro a escrever sobre o teólogo João Calvino?
Uma película que ilustra bem o texto acima é “Lutero” (título original “Luther“, de 2003), com realização de Eric Till, e um elenco com Joseph Fiennes, Alfred Molina, Peter Ustinov e outros. Em duas horas dá para visualizar o drama, com os planos destacáveis do cinema e a dramatização de uma vida aparentemente comum, talhada para o embate e que não aborda o reclamado por alguns especialistas, que dizem que alguns escritos de Lutero eram antissemitas e contra os muçulmanos.

Como todo conhecimento deve necessariamente ser interpretado à luz dos nossos dias, o verificável é que as religiões continuam com as suas práticas escusas, escoradas na ignorância daqueles que continuam a adquirir um pedaço de pano das vestes de santos (haja tecidos) e em países atrasados e subdesenvolvidos o resultado do protestantismo observa-se com algumas igrejas inescrupulosas (no Brasil, pastores chegaram a vender aos seus fiéis um óleo que combateria a Covid e, pior do que se indignar com isso, é observar que carneirinhos dóceis gostam de ser tosquiados).
Martinho Lutero teve lá a sua importância, morrendo aos 62 anos acometido de um derrame cerebral, mas concordo com Nietzsche: antes tivesse ficado quieto e ver morrer o monstro aos poucos… mas aí certamente seria totalmente ignorado pela História, pelo facto de ser apenas mais um. Não o foi.
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!