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“O Anticristo”, de Friedrich Nietzsche (1844-1900) é um pequeno ensaio publicado após a sua morte. A obra trata de uma crítica capital ao cristianismo, elencando discussões que perpassaram toda a filosofia do prussiano – alemão, tais como a recuperação dos Deuses trágicos, a sua aversão ao ideal de moralismo enraizado na cultura alemã e o já citado cristianismo.

Portanto, este ensaio não deve ser visto independentemente de todo o legado deixado pelo filósofo alemão, pois esse procedimento pode levar a equívocos irreparáveis na compreensão do seu pensamento. De facto, ele está discutindo com toda uma tradição, criticando arduamente os rebanhos formados pela fé cristã. “O Anticristo” elenca diversas discussões, dentre as quais podemos destacar: a moralidade confundida com o cristianismo, os modelos de deuses e os mártires religiosos na problemática da sedução.

A discussão que Nietzsche faz a respeito da relação entre cristianismo e moralidade remete-nos obrigatoriamente à leitura de “A Genealogia da Moral” e “Crepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo“. “O Anticristo” remete ao problema do cristianismo, e a sua estreita relação com a moralidade. No entendimento do filosofo, a religião cristã inaugurou um processo de degradação na vida da humanidade. Os valores que outrora vigoraram são jogados por terra através da ideologia cristã, tudo isso legitimando a moral dos escravos, dos derrotados, que buscam o seu consolo no ódio mortal contra tudo o que possui vida.

O que era entendido outrora como bom, torna-se mau. Antes de mais nada, o cristianismo inverte a ordem, remetendo a um além, a um deus, a uma coisa-em-si, que na compreensão nietzschiana equivalem a um nada. Esse platonismo barato adaptado ao meio cristão agrada, contudo, aos fadados à desgraça. Errantes por nascimento, procuram um elo de ligação fraternal com outros errantes.

“A Genealogia da Moral” (1887)

Esse ódio a tudo o que é humano, advém desse platonismo incurável. Para os crentes, compreendido aqui numa visão geral, a vida perde a efetividade. Esperam felizes a recompensa num céu prometido. Lá, “os últimos serão os primeiros”. Dessa maneira, o simplismo na inversão dos valores torna quieta qualquer aspiração. Os bravos, os corajosos, os imorais, os ateus, serão julgados e suplantados pela casta dos fracos, dos covardes, dos moralistas. Nietzsche ironiza o “Dia do Juízo Final”, pois, no seu entendimento, a fé legitima a moral dos oprimidos. Na sua obra “Assim Falava Zaratustra“, Nietzsche concebe o Super Homem, o homem imoral. Zaratustra anuncia a morte de Deus.

O interessante é que ele parodia a própria religião, com seus versos imperativos. A moral não adquire a sua independência, atrelada que está ao cristianismo, sendo entendida como um mero fundamento religioso, daí a conceção dele de “transvaloração de todos os valores”, pois somente assim poderia a Humanidade tornar-se mais efetiva. Do contrário, estaríamos fadados à “democracia feminina”, à relativização mediadora do instinto do forte. Essa mediação apresenta-se no fraternal ideal de que somos, antes de mais nada, não individualidade. O instinto é castrado e combatido de imediato e logo é entendido como desmedida, impróprio. Essa mediação é comprovada na seguinte citação:

Denomina-se cristianismo a religião da compaixão. A compaixão está em oposição às emoções tónicas, que elevam a energia do sentimento vital: tem efeito depressivo” (NIETZSCHE, Friedrich, O Anticristo. Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1999, p. 393).

Ao analisar a problemática dos modelos antagónicos dos Deuses, torna-se fundamental a leitura de “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música“. Daí, segue-se uma comparação entre a valorização dionisíaca e a palhaçada cristã. Nietzsche enxerga nos padres – a começar pelo apóstolo Paulo – a degenerância mutiladora do bem viver. Sentencia que o cristianismo é uma doutrina que promete tudo, mas que não cumpre nada.

“Crepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo” (1889)

O grande ídolo dele é Dionísio, o herói trágico grego, e a sua turma de ditirambos. Enxerga em Dionísio a exacerbação do viver, a desmedida, decorrendo num pulsar vital. Concernente a essa época, veremos que os Deuses são Deus por serem, antes de mais nada, efetivos. O ódio, a paixão, a alegria, enfim, esses são atributos divinos que remetem à ideia de grandeza. No parágrafo 16 de “O Anticristo”, afirma:

A castração natural de um Deus em um Deus meramente do bem seria aqui totalmente indesejável. Tem-se tanta necessidade do deus do mau quanto do bom; aliás, não é precisamente à tolerância, à amizade, aos humanos, que se deve a própria existência… De que serviria um deus que não conhecesse ira, vingança, inveja, escárnio, ardil, violência?” (NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1999, p. 396).

Esse deus do bom é o deus do cristianismo. A começar pela mentira do deus ressuscitado, esse deus bonachão que vem em auxílio aos humildes, aos fracos e oprimidos, que envergam nele uma tábua de salvação. A partir daí a humanidade ganha os “guetos”, os “hospitais”, palavras usadas por ele para definir o homem inferior (mas que se considera superior pelos valores outorgados metafisicamente). Esses parvos julgam-se superiores, num constante ódio a tudo o que é terreno. No que concerne à religião, esta, ligada ao moralismo, alude a causas imaginárias, para arregimentar o “rebanho de ovelhas”. De imediato, torna-se inimiga da sabedoria.

O primeiro passo da religião sempre é o combate aos filólogos e aos médicos. Aos primeiros, pois o filólogo interpreta fielmente o conteúdo e enxerga a mais clarividente verdade, através dos textos e da análise fria de cada palavra. Aos médicos, pois estes conseguem ler através da depravação fisiológica do homem submisso, ou seja, o cristão. Aqui ocorre um embate a respeito da verdade. Entendida terrenamente, a verdade é, sobremaneira, anticristã. Por outro lado, os crentes nauseabundos enxergam a verdade no âmbito da “Iluminação”, que nos remete ao Além. Ora, isso faz parte de um delírio no qual se entrincheiram os mentirosos, sem vínculo nenhum com a ciência. Esse “Além”, como já foi dito, não é efetivo, é quimera.

Friedrich Nietzsche

Outra questão abordada por Nietzsche diz respeito à sedução causada pelos mártires. Mas afinal, por que os mártires seduzem? Os mártires seduzem, pois concebem a vida a uma espera eterna. Como acreditam que a verdadeira vida só se dá num além, emprestam o seu corpo a toda espécie de sofrimento, e essa abnegação à vida terrena leva a uma idolatria. Primeiro porque já se delegou para a humanidade o sentimento da compaixão. Nietzsche diz-nos:

Mas a grande atitude desses espíritos doentes, desses epilépticos do conceito, faz efeito sobre a grande massa – os fanáticos são pitorescos, a humanidade prefere ver gestos a ouvir razões“… (NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1999, p. 405).

Assim, o mártir se isenta de trilhar a verdade. O embotamento manifesta-se em frases como esta: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, como se fosse possível um determinismo. Confunde-se o excesso de candura e o espírito aceitador. A humanidade emociona-se com a “fatalidade última dos beatos”, em detrimento do pensar a respeito desses mesmos indigentes.

O “judeu da Antiguidade”, termo pejorativo usado por Nietzsche para nomear Jesus Cristo, é o exemplo cabal disso. Através da inversão dos valores dos mais fortes, consegue arregimentar a turba dos desesperados. Ele proferiu a ideologia certa. Leccionou a sua moralidade a quem mais precisava dela. Antes de ser um salvador, Jesus foi um populista. Nietzsche enxerga no combate à doutrina cristã o contraponto e o seu fortalecimento. Ele esclarece:

Precisamente isso foi a estupidez histórico-universal de todos os perseguidores, terem dado à causa adversária a aparência de honrada, terem-lhe dado de presente a fascinação do martírio” (NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1999, p. 404).

Tomando a figura de Jesus Cristo, este poderia passar despercebido, pois foi apenas um dos profetas do além. Não foi o primeiro e nem seria o último. Todavia, a religião cristã compreende a ideia de eternidade a um período de dois mil anos, mentindo descaradamente a respeito dessa confusão. Outra batalha inútil, no entendimento de Nietzsche, ocorreu na época do Renascimento Clássico. Esse movimento foi o mais próximo da tão esperada derrocada da religião cristã.

Afinal, a releitura dos filósofos clássicos, a valorização da arte e a prática mais eficaz da ciência, aliado ao retorno do Antropocentrismo, enfim, tudo isso foi uma tentativa de uma visão diferenciada do mundo que se apresentava. Mas aí surge uma crítica ferrenha do escritor aos alemães, principalmente ao “padre mal-sucedido” Martinho Lutero que, ao se revoltar contra a Igreja ocasionou o seu fortalecimento, além de inaugurar o protestantismo, entendido por Nietzsche como “o mais sujo dos cristianismos”.

Concluímos que “O Anticristo” é um adendo a várias discussões que acompanharam seu autor ao longo da sua vida. De peculiar, o ensaio apresenta um linguajar heróico, forte e direto, sem meios termos. Nietzsche desmistificou a teologia, entendendo que o ato heróico pertencia à esfera do terreno. É um requerimento a um pulsar de vida, tão desbotada antes, durante e após esse extemporâneo filósofo.

Escrevi este texto ouvindo Richard Wagner!

Marcelo Pereira Rodrigues

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