Depois de uma Suécia protestante, passamos para a Itália católica, na companhia de um quase contemporâneo de Bergman que utilizou o cinema de modo igualmente ambicioso. Federico Fellini nasceu no noroeste de Itália em 1920 e enquanto que o primeiro mundo simbólico de Bergman foi o teatro, a inspiração de Fellini foi o circo, quando aos sete anos fugiu para se juntar a um deles. Enquanto que Bergman encontrou nos fantoches o âmago da sua ideia temática de que os seres humanos são movidos por uma força maior do que eles, Fellini encontrou no circo algo mais brilhante, uma extravagância visual, espetacular e fora de escala.
Tornou-se cartunista e abriu uma loja em Roma, que foi visitada por Roberto Rossellini, que tinha em mãos um filme realista sobre a cidade, “Roma, Cidade Aberta” (Itália, 1945). Fellini colaborou alguma coisa no argumento deste filme. O seu primeiro sucesso enquanto realizador, foi o filme “Os Inúteis” (Itália, 1953), que é marcado pelo sentido de pormenor de Rosseillini. Baseado nos seus anos de juventude em Rimini, seguiu-se-lhes outra obra autobiográfica, “A Estrada” (Itália, 1954), que aborda a relação de um homem forte do circo com uma tímida jovem. A obra partilha as delicadas e míticas qualidades de “Ladrões de Bicicletas” (Itália, 1948), e foi um enorme êxito internacional.
Fellini convidou a actriz de “A Estrada”, Giulietta Masina (que veio a ser a sua mulher) para protagonista do seu filme “Noites de Cabíria” (Itália, 1957). Pela segunda vez, a actriz representou o papel de uma jovem solitária e de coração ardente, inspirada no vagabundo que era Charles Chaplin. A primeira metade do filme é o retrato vivo da interacção de Masina com as outras prostitutas, mas a grandiosidade de Fellini surge na segunda metade do filme. Masina vai a um seminário católico, onde em todo o seu redor há gente a lamentar-se. No meio desse frenesim, há mulheres que sobem as escadas de joelhos. Masina pede graça à Virgem Maria, mas nada lhe acontece.

“O Sétimo Selo” retratava um mundo no qual a divindade era posta em dúvida, enquanto que “Noites de Cabíria” reflectia uma sociedade na qual a religião tinha desaparecido, mantendo-se apenas as suas imagens.
Depois desse desapontamento espiritual, Masina vai a um teatro de segunda ordem na outra ponta da cidade onde um mágico está a actuar. Quando está a ser hipnotizada, imagina que tem de novo dezoito anos, e que está apaixonada. Com o desenrolar do filme, pode-se concluir que as possíveis direcções que o filme oferece nos seus últimos vinte minutos são imprevisíveis. A última parte de “Noites de Cabíria” funciona como se outrem tivesse de facto “assumido o comando” da realização. O remake deste filme foi o musical “A Rapariga que Queria ser Amada“, de Bob Fosse, em 1969.
“A Estrada” e “Noites de Cabíria” não foram tão literários como os filmes de Bergman, mas também exploravam a condição humana, embora usando a linguagem do cinema de um modo mais alegre do que o seu contemporâneo sueco. Mas o melhor de Federico Fellini ainda estava para vir. Os seus últimos filmes tornar-se-iam intensamente pessoais, extravagantes representações da sua vida erótica. Teve uma tão grande influência em realizadores como Martin Scorsese e Woody Allen, que o termo feliniano tornou-se numa expressão muitas vezes utilizada nos textos de crítica cinematográfica.
O cinema florescia em França nos anos 50, e os filmes mais populares eram comédias e filmes históricos de grande orçamento, de realizadores como René Clement, Claude Auntant-Lara, e Jacques Becker. Jean Renoir continuava o seu trabalho, tal como Marcel Carné ou Jean Cocteau, mas quem os eclipsou a todos em rigor estilístico foi o sóbrio realizador Robert Bresson, que tinha começado a ser realizador no início dos anos 40, mas cujos filmes dos anos 50 eram tão austeros quanto os de Dreyer.
Bresson foi talvez, dos realizadores internacionais que apareceram nos meados dos anos 50, o mais ambicioso em termos artísticos. O seu filme de 1959, “O Carteirista“, contém sequências onde o actor Martin Lassalle é filmado de um modo sóbrio e singelo. A objectiva utilizada para filmar essas sequências era de 50 mm, que se aproxima da visão humana, e a iluminação corresponde à plena luz do dia. O guarda-roupa é contemporâneo, exactamente aquilo que a personagem usaria na rua. O aspecto de Lassalle não é o de um ídolo de matinés e o seu rosto não tem qualquer expressão.

Se Bergman e Fellini filmavam a vida como se fosse um teatro ou um circo, respectivamente, o microcosmo de Bresson era o de uma prisão. Nascido em França em 1907, estudou Grego e Latim, Pintura, e Filosofia, e conseguiu o seu primeiro emprego ligado ao cinema em 1933, vindo a trabalhar com Clair em 1939. Entre 1950 e 1961, fez quatro filmes, todos eles sobre a sujeição. Em “Diário de um Pároco de Aldeia” (1950), um jovem padre reflecte sobre a sua vida, adoece e morre; em “Fugiu um Condenado à Morte” (1956), um operário com ligações à Resistência foge de uma prisão alemã; e em “O Processo de Joana D’Arc” (1962), filma o cativeiro desta mártir, trinta e três anos após a adaptação de Dreyer.
Sendo que estes filmes sobre a vida na prisão tão importante na carreira de Bresson, é fácil cair na tentação de exaltar o aprisionamento do próprio realizador pelos alemães na Segunda Guerra Mundial. Não seria contudo correcto fazê-lo, visto que o seu trabalho não é fruto de qualquer claustrofobia ou trauma mental de que poderia resultar uma tal experiência. Tal como Ozu, os seus filmes não são expressão de qualquer caos. São o oposto de Fellini, pelo seu cariz desprovido de autobiografia, o os seus métodos, que resultam em imagens como as de “O Carteirista”, que podem ser explicadas por essa própria ideia de desconexão.
Fazendo eco directo aos sentimentos de Ozu do início dos anos 30, disse: “Nos meus filmes, tento cada vez mais acabar com aquilo a que as pessoas chamam de ‘intriga’. A intriga é uma ideia de romancista“. A primeira frase do seu pequeno livro dos mandamentos do cinema, “Notes Sur le cinématographe“, diz: “Quero livrar-me dos erros acumulados“. No final dessa mesma página, acrescenta: “Nada de actores. Nada de papéis. Nada de encenações“. Bresson rejeita todo o folclore dos estúdios de Hollywood, toda a excitação pessoal e técnica dos primeiros anos, e a subsequente passagem para a narrativa. Rejeitou os progressos acumulados do cinema, bem como todos os seus esquemas, à excepção talvez dos documentários.
Bresson odiava a tentativa de se fotografar os pensamentos do actor, e defendia que era mentira que se podia exprimi-los através do cinema. E isso está explícito em todos os seus filmes. O vazio e a ausência de expressão facial dos personagens no filme “O Carteirista” foram conseguidos através de repetidos ensaios. Bresson mandava Lassale repetir as cenas vezes sem fim, até atingir um nível tal de saturação que já representava como um robô. O realizador também via nisso um processo de desligamento. “Os gestos que tiveram de repetir vinte vezes. As palavras que aprenderam com os lábios encontrarão, sem que a mente intervenha, as inflexões, e a cadência, próprios da sua natureza“.


Em muitos filmes não é oferecido acesso directo aos sentimentos dos personagens, mesmo sendo alguns mais sofisticados em termos psicológicos comparativamente a outros. Bresson não só prescindiu das exacerbadas emoções de Hollywood e do seu realismo romântico fechado, como se distanciou de tudo isso ainda mais do que Ozu. Este tinha encontrado um equilíbrio clássico entre a vida interior das suas personagens, e um modo de estar na vida não centrado nos seres humanos.
Bresson desprezou os pormenores íntimos humanos, ao contrário de Ozu, mas ao fazê-lo, quis também um cinema tecnicamente austero, povoado por robôs sem sentimentos. O seu objectivo era retratar a “mão invisível que dirige aquilo que se passa”, tal como Dreyer fizera em “A Palavra“. E é aqui que a metáfora da prisão de Bresson revela em pleno a sua riqueza. Segundo este, os seres humanos estavam encarcerados nos seus próprios corpos e o cinema era a arte perfeita para captar esse fenómeno, e a sua objectividade captou magnificamente isso mesmo. Por altura da estreia de “O Carteirista”, Bresson explicou o seguinte: “Terá de haver, em dado momento, uma transformação. Se não houver, não existe arte“.
A rejeição de Bresson às normas do cinema é tão deliberada que o leva a tender para abandonar a sua história. Contudo, a sua atitude descomprometida tem sido bastante influente em certos quadrantes. Os seus filmes foram exibidos no Instituto do Filme e Televisão da Índia, em Pune, tendo a sua anti-expressividade provocado um profundo impacto nas obras dos anos 70 e 80 do realizador indiano Mani Kaul. A escola de cinema Lodz também exibiu os filmes de Bresson, e o realizador polaco Krysztof Kieslowski viu-os. Mais recentemente, a realizadora escocesa Lynne Ramsay diz que tinha Bresson na cabeça quando filmou “Ratcacher” (Reino Unido, 1999) e “A Viagem de Morvern Callar” (Reino Unido, 2002).
A atitude de Bresson é tão profundamente oposta às tradições sensacionalistas do cinema americano que chega a ser surpreendente descobrir que ele deixou a sua marca mais directa no crítico e realizador americano, Paul Schrader. Este ficou tão impressionado pela incursão do espiritual no mundo físico, que acabou dois dos seus filmes, “American Gigolo” (EUA, 1980), e “Perigo Incerto” (EUA, 1991) exactamente dessa maneira.
Enquanto Bresson foi o realizador francês mais radical a nível de estilo dessa época, outros aspectos da cultura cinematográfica francesa dos anos 50 foram de igual modo extremos. Os argumentos de uma geração muito particular de críticos de cinema, que escrevia para a revista Cahiers du Cinéma, eram tão contestatários quanto os filmes de Bresson, e tiveram um efeito considerável. Em 1956, um protegido de André Bazin, o fundador da revista, o jovem de vinte e quatro anos, François Truffaut, escreveu: “‘Fugiu um Condenado à Morte’ parece-me reduzir a nada um certo número de ideias preconcebidas que têm governado o cinema, desde a escrita do argumento até à realização“.
Truffaut nasceu em Paris, teve uns pais pouco interessados, deixou a escola aos quinze anos e tornou-se obcecado pelo cinema. Herdou parte da força moral da crítica de Bazin, mas acrescentou-lhe uma nova raiva, típica dos anos 50. No mesmo ano em que a França sofreu a derrota na Indochina, Truffaut escreveo no Cahiers um artigo que viria a ficar famoso, “Uma Certa Tendência no Cinema Francês”. Com uma série de notas, o artigo pôs o dedo na ferida ao denunciar os filmes de prestígio, de inspiração literária feitos naquele país, nessa época.
Muito embora quase todo ele centrado na adaptação de romances franceses para o cinema, o artigo apontava o dedo ao trabalho de escritores como Jean Aurenche, Pierre Bost, e de realizadores como Claude Autant-Lara e Jean Delannoy, cujos filmes impessoais eram tecnicamente brilhantes, feitos num estilo frio, tipicamente de estúdio, e representativos do género “camisa impecavelmente engomada”. Essas obras hastearam a bandeira francesa internacionalmente, ganharam prémios, foram muito populares entre a classe média, mas falharam na tentativa de captar a tensão contemporânea. Ao contrário de Bergman, Fellini ou Bresson não se questionavam sobre a natureza da vida humana ou sobre o simbolismo cinematográfico. Truffaut defendia que eles não tinham razão de existir, estavam mortos.
Bibliografia
Cousins, Mark.”Biografia Do Filme”.2015.Plátano Editora
Cousins, Mark.”História do Cinema: Dos Clássicos Mudos ao Cinema Moderno”.2013. Martins Fontes
Bergan, Ronald.”Guias Essenciais: Cinema”.2006.Dorling Kindersley