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Porque A Arte Somos Nós

Muitos dos realizadores da Europa de Leste utilizaram símbolos nos seus filmes para escapar a restrições políticas, tal como os seus antepassados, Lubitsch e Hitchcock, tiveram de contrapor-se a restrições de carácter sexual. Outros cineastas dos anos 50 seguiram D.W. Griffith, Von Stroheim, Ozu, Ford, Welles e Kurosawa, recorrendo à metáfora, não necessariamente devido a restrições políticas ou de censura, mas apenas para enriquecer as suas obras. Os escandinavos Carl Theodor Dreyer e Ingmar Bergman foram dois casos preeminentes.

O realizador dinamarquês, Dreyer, com o seu filme “A Paixão de Joana D’Arc” (França, 1927), representou o apogeu da expansão estilística dessa época. Este austero e religiosamente intenso realizador fez apenas quatro filmes nos vinte e seis anos intermédios, mas volta com “A Palavra” (Dinamarca, 1955), um dos mais ousados filmes alguma vez realizados. Este é baseado numa peça de Kaj Munk, a quem Dreyer louvou de imediato pela sua “espantosa coragem”, conta a história de uma família cujo filho do meio, mentalmente instável, consegue trazer de volta a mulher do irmão do mundo dos mortos, e consequentemente este recupera a sanidade.

“A Palavra” (1955)

Raramente o cinema fora tão transcendental. Enquanto que o realismo romântico fechado incita as suas personagens a serem seres humanos mundanos, parecidos com os espectadores, mas mais sofisticados, Dreyer vive num universo no qual um espírito divino é acessível àqueles que acedem à graça e a um grande poder de introspecção.

Mother India“, de Mehboob, é outro retrato de um mundo pio, mas as suas excitantes e coloridas características contrastam com a pureza e o minimalismo de Dreyer. A sua câmara move-se entre personagens e cenas, de modo a fazê-la mostrar a verdade espiritual inerente a acontecimentos do dia-a-dia. Tal como no filme “O Gabinete do Dr. Caligari” (Alemanha, 1920), de Robert Wiene, o estilo de Dreyer não é redutível a um ponto de vista individual e humanista. Ao contrário do filme de Wiene, parece representar uma consciência ideal, um tutor moral.

Isto opôs-se às já mundanas tendências da sociedade em meados dos anos 50, mas influenciou o realizador sueco, Ingmar Bergman, e outros metafísicos do cinema como Andrey Tarkovsky, Béla Tarr, e o compatriota de Dreyer, Lars Von Trier. No final do seu supostamente moderno filme “Ondas de Paixão” (Dinamarca, 1996), aparecem sinos celestiais; mas em “A Palavra”, esses sinos aparecem como uma incursão final do espírito. O simples comentário de Von Trier de que essas cenas foram filmadas “sob o ponto de vista de Deus”, bem poderia ser aplicado também ao filme de Dreyer.

“Ondas de Paixão” (1996)

O influente realizador sueco, Ingmar Bergman, ganhou importância em meados dos anos 50. Nasceu em 1918, no seio de uma severa família luterana e o pai era capelão da família real sueca. Tal como outros mestres do cinema, como Hitchcock e Polanski, o jovem Bergman foi muitas vezes de castigo para dentro do armário. Tal como acontecera com Orson Welles, fascinou-se pelo teatro aos cinco anos, escrevendo peças e montando espetáculos de fantoches. Adaptou e escreveu argumentos no início dos anos 40, e começou a realizar em 1944, explorando temas relacionados com o confronto de gerações na Suécia do pós-guerra.

Noite de Circo” (1953) foi o seu primeiro trabalho a adoptar a profunda seriedade moral que se veio a tornar a sua assinatura. Passava-se num circo, e tratava as personagens como indivíduos introvertidos, quase como marionetas manipuladas por cima, sujeitas a uma força sobre-humana de sina e destino espiritual. Foi um enorme êxito no seu país, mas foi o sucesso internacional do filme seguinte, “Sorrisos de uma Noite de Verão” (1955), no Festival de Cinema de Cannes, que transformou o realizador num artista mundial.

Há que fazer referência a “O Sétimo Selo” (1957), e ao seu lugar na emergência do simbolismo no cinema dos anos 50. As origens do filme eram invulgares e tiveram origem nas recordações de infância de Bergman quando era levado pelo pai às pequenas igrejas da província. O jovem contemplava com emoção as pinturas medievais das igrejas, dizendo mais tarde que no filme “O Sétimo Selo”, que “a minha intenção foi retratar a humanidade do mesmo modo que estes frescos. As minhas personagens riem, choram, lamentam-se, têm medo, falam, respondem, perguntam. Teme a Peste e o Juízo Final. A nossa angústia é de um género diferente, mas as palavras são as mesmas.”

“O Sétimo Selo” (1957)

O realizador exorciza esse terrível mundo medieval contando a história de um cavaleiro sueco que regressa das cruzadas na altura da Peste Negra, que se encontra com a Morte e joga xadrez com ela. O filme começa com planos de um céu nublado e uma citação do “Livro da Revelação“, que fala de um tempo em que Deus esteve em silêncio durante meia hora, e de quando um anjo “pegou num incensório, encheu-o com fogo do altar e lançou-o sobre a Terra. E houve vozes, trovões e relâmpagos, e um terramoto.”

Para Bergman, essas imagens simbolizavam a ameaça da guerra nuclear, e tal como vários intelectuais dessa época, fora influenciado pelos escritores existencialistas franceses do final dos anos 40 e início dos anos 50, que argumentavam não ser possível acreditar em Deus depois dos campos de concentração nazis, e das bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki.

O neo-realismo foi a sóbria resposta moral por parte do cinema às calamidades da Segunda Guerra Mundial, mas nunca até aí um filme tinha usado metáforas complexas para debater as consequências dessa mesmas calamidades. Assim, Bergman, mais do que qualquer outro realizador desde os anos 20, conseguiu convencer intelectuais do mundo inteiro de que o cinema era semelhante à literatura ou ao teatro.

Bibliografia

Cousins, Mark.”Biografia Do Filme”.2015.Plátano Editora

Cousins, Mark.”História do Cinema: Dos Clássicos Mudos ao Cinema Moderno”.2013. Martins Fontes

Bergan, Ronald.”Guias Essenciais: Cinema”.2006.Dorling Kindersley

One thought on “Génios de mãos dadas: Dreyer e Bergman

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