“O homem comum, este produto industrial da natureza, tal como esta o apresenta diariamente aos milhares, é incapaz, ao menos de modo persistente, de uma observação em todo sentido inteiramente desinteressada: ele pode dirigir a sua atenção às coisas somente enquanto estas apresentam uma relação qualquer, mesmo que apenas mui mediatizada com a sua vontade”
“O Mundo como Vontade e Representação”
Arthur Schopenhauer (1788-1860) é um dos mais importantes filósofos do século XIX, autor do clássico “O Mundo como Vontade e Representação“, em que insere elementos budistas e hinduístas na sua proposta filosófica. Antes de qualquer coisa, irei situá-lo no momento em que o grande filósofo Hegel (de quem já tratei aqui) era o grande destaque tanto nas universidades quanto nos seus destacados livros, sendo o expoente do Idealismo alemão. Vamos escrever acerca da inveja, recalque e outras coisas mais?
O certo é que Schopenhauer não gostava nada desse excesso de crédito a Hegel, sendo um opositor ferrenho da sua filosofia. Tipo aquele sujeito que fica seguindo o perfil de uma celebridade nas redes sociais e fica xingando-o a torto e a direito, sendo que a celebridade nem sabe quem é o infeliz opositor. Mais ou menos assim. Schopenhauer propôs cursos livres de Filosofia, mas os seus alunos são poucos em comparação com os auditórios sempre lotados de gente nas palestras de Hegel. Enfim, no campo profissional, a vida não foi fácil para o nosso Arthur.

Mas, esta apresentação um tanto desabonadora pode fazer parecer que ele era apenas um recalcado, mas nada disso. Doutor em Filosofia, com um vasto conhecimento de filosofia clássica e medieval, desde muito jovem ainda, além de estudar desde cedo as religiões orientais, tudo isso formou a capacidade intelectiva do nosso pensador.
A sua ojeriza a Hegel tinha também motivação intelectual: não concebia o grande sistema filosófico de explicação de mundo do autor de “A Fenomenologia do Espírito” e acreditava que essa explicação do mundo apenas racional fazia o indivíduo ter pouca importância, uma vez que os sentimentos não foram abordados, a mesma crítica feita pelo filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855). Assim sendo, a grande explicação metafísica de Hegel não serviria de nada.
Refletindo sobre tudo isso e publicando a sua filosofia, embasado num vastíssimo estudo, legou-nos a nós o seu livro mais célebre: “O Mundo como Vontade e Representação”. Vamos destrinchar um pouco e explicarmos passo a passo?
Afirmava o seu autor que a força motriz do mundo não era mais um Deus, uma coisa-em-si (termo aplicado por Immanuel Kant, do qual também já tratei aqui): era a Vontade. Mas que fique bastante claro: aqui ele aborda a Vontade como aspecto metafísico, e não meramente a vontade com a qual cada indivíduo se coloca no mundo. Essa força motriz, captada pelo ser humano neste “mundo, vasto mundo”, leva-o a captar a representação daquilo que o mundo lhe oferece, ou seja, o fenómeno. Sendo assim, trata-se de uma filosofia do indivíduo em detrimento aos grandes sistemas éticos e morais, consequentemente, racionais.

Estando visceralmente unido ao mundo, Schopenhauer não o vê com bons olhos. Aliás, não percebe nele nada além de sofrimento, dor e desatino. Não por uma sentença divina, mas sim pela natureza humana que é péssima na sua totalidade. O descrédito dele com a raça humana é contundente: percebe o egoísmo, a falta de caráter, o mal que todos infligem a todos e tudo o que se percebe é um festival de lástimas.
Como fragmentos desta Vontade Universal, atrela ela ao desejo, e é aí que as coisas se complicam. Quando o sujeito deseja muito algo, luta horrores para conseguir esse algo. Aí você consegue. E aparece o tédio, aquele sentimento de satisfação saciada que nos faz perguntar: “Então dormir com a Nicole Kidman era apenas isso?”. Mas aí advindo deste tédio surgiria um novo desejo. Nós lutaríamos bastante para satisfazermos esse desejo. Conseguiríamos e aí… aparece novamente o tédio. Schopenhauer enxergava nessa roda insana o rol de sofrimentos da humanidade: desejo – satisfação deste desejo – tédio. E isso ao infinito.
Saídas? Vamos apontar algumas. Segundo Schopenhauer, a obra de arte seria um primeiro passo para sair deste mundo apenas materialista. Então você está no Louvre contemplando uma obra de Anthony van Dyck e o sentimento é de êxtase, o seu espírito voa para longe e quando se dá conta, perde a noção de que está em Paris no ano de 2018! Essa contemplação é uma primeira lapidação do seu espírito.
Já que o mundo é um calvário de semelhantes doentes e infelizes, que não conseguem obter nada de bom, surge o aspecto ético da sua filosofia, que é o sentido de alteridade e desta forma a solidariedade entre todos nós, flagelados, é uma saída possível. Nisso ele certamente inspirou-se nas religiões, com a compaixão. Sentir as dores do outro e entendê-la como natural e intransferível.

O terceiro estágio seria o Nirvana, a Iluminação. Um indivíduo que se desapegasse de tudo o que é terreno e material, onde as dores não mais o acometeria. Isso derivado das religiões orientais, sendo Schopenhauer um expoente desse intercâmbio cultural e filosófico. Mas o nosso bravo filósofo sabe que isso é quimérico, sendo que poucos apenas conseguem levitar a uma situação em que a sua representatividade no mundo seja justificada.
Como homem, Arthur Schopenhauer não era flor que se cheirasse. Não gostava nem um pouco de companhia e, na taberna onde almoçava, pedia à dona do estabelecimento que o isolasse numa mesa com apenas uma cadeira, longe dos demais. Teve que pagar uma indemnização a uma mulher que foi empurrada escadas abaixo por ele, num momento de raiva. Acerca das mulheres, era pouco tolerante: “Cabelos longos, ideias curtas”.
Pensava ser inconcebível o amor romântico, entendendo apenas que era sempre a união de duas almas sofredoras em busca da procriação. Com desdém, referia-se à raça humana como bípedes e deu o nome ao seu cão de Átima, que na linguagem hindu significa “a alma do mundo”. Aliás, foi um dos primeiros filósofos ocidentais a escrever a favor dos animais. Certamente essa pessoa detestável que ele era faria questão de ser contribuinte para uma ONG (Organização Não Governamental) que apoiasse os bichos.
Antes de ser um frustrado, e até devido ao facto de ser eclipsado por Hegel durante grande parte de sua trajetória, teve a felicidade de, no final da sua vida, ter o devido reconhecimento e dizem que até sorria ao ver o seu nome nos jornais. Para além do excelente “O Mundo como Vontade e Representação”, escreveu obras mais populares que logo caíram no gosto do grande público, esse menos iniciado. Exemplos de “Parerga e Paralipomena“, “Aforismos para a Sabedoria de Vida” e outros.

Li e recomendo a sua escrita intencionalmente “cafajeste” de “Como Vencer Um Debate sem Precisar Ter Razão“, pois veja este trecho: “Provoca-se a cólera no adversário, para que, na sua fúria, ele não seja capaz de raciocinar corretamente e perceber a sua própria vantagem. Podemos incitar a sua cólera fazendo-lhe algo francamente injusto, vexando-o e, sobretudo, tratando-o com insolência“; e o livro que penso ser obrigatório para qualquer escritor, “Sobre o Ofício do Escritor“, e um dos conselhos levei muito a sério na minha vida: “A condição para ler obras boas é não ler obras ruins, pois a vida é breve, e o tempo e as forças são limitados“.
Schopenhauer angariou reconhecimento ainda no seu tempo, sendo o filósofo Nietzsche (de quem também já tratei aqui) um dos seus leitores e seguidores, inclusive publicando uma obra denominada “Schopenhauer Educador“. Sigmund Freud também foi um dos seus mais entusiastas leitores.
Geralmente denominado filósofo pessimista, venho analisando há muito acerca desse epíteto e entendo que ele foi realista, isso sim. É que enxergar demais num mundo de cegos costuma ser bastante complicado.
Deixo a sugestão para assistirem ao filme “A Excêntrica Família de Antonia” (Países Baixos, 1995): é que existe um personagem ranzinza que foi totalmente inspirado no nosso Schopenhauer. Excelente filme, bastante premiado.
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3 thoughts on “Schopenhauer: O filósofo que não gostava de gente”