“Da mesma forma como provavelmente não haja, segundo os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que não há um só que esteja isento de desespero, que não tenha lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de si mesmo”
“O Desespero Humano”
Vamos passear pelo século XIX um pouquinho mais? Aqui no Barrete, já discorri sobre Hegel, Schopenhauer e Nietzsche. Agora é chegada a hora de visitarmos a Dinamarca e falarmos de um dos filósofos mais importantes da História da Filosofia: Sören Kierkegaard. Nascido em 1813, o garoto prodígio inteirou-se de toda a moda filosófica à época e, mesmo na Dinamarca, ecoavam os ensinamentos de Hegel acerca da compreensão do mundo através do Absoluto. O jovem Kierkegaard, que estudou Filosofia e Teologia, investigou-se a si mesmo e deu relevância aos seus próprios sentimentos como forma de pensar a vida.
Pronto, criou um racha naquela concepção absolutista de Hegel de que apenas a razão daria conta de tudo. É célebre a sua frase: “Hegel construiu um castelo. Mas foi morar num celeiro“. Essa profunda investigação do Eu o fez inaugurar, certamente sem pretendê-lo, a filosofia existencialista, com viés religioso, em detrimento à filosofia existencialista sartriana do século seguinte, notadamente ateia.

Uma das suas mais intrigantes formulações filosóficas foi acerca dos três estágios no modo de se conduzir a vida. O primeiro era o Estético, o modo contemplativo de se ver a vida, e isso advindo do romantismo alemão. Segundo ele, o indivíduo comporta-se aqui como um sedutor, jogando com a vida e com as pessoas. Uma forma meia irresponsável de se viver. Advém daí o seu excepcional livro “Diário de Um Sedutor“, em que atua como um autêntico Don Juan apenas pelo prazer da conquista. (Obs: mulheres, não leiam este livro!).
Leiam esta passagem acerca da esperança da donzela com o noivado: “O casamento será sempre uma instituição respeitável, apesar do enfado de desfrutar, logo nos primeiros dias da juventude, uma parte da respeitabilidade que é apanágio da velhice. Pelo contrário, os noivados são uma invenção verdadeiramente humana e, consequentemente, de tal modo importante e ridícula que uma jovem, no turbilhonar da sua paixão, vai mais além, continuando a ter consciência dessa importância e sentindo a energia da sua alma circular por todo o seu ser como um sangue superior“.
As maquinações subtis são engraçadíssimas e isso demonstra bem a forma de conduta do seu autor. Se é alter ego não podemos ter certeza, mas infere diretamente no seu namoro e noivado com a jovem Regina Olsen, de apenas 14 anos. O grande amor da vida do filósofo, que atormentado por dilemas morais, resigna-se a não dar vazão e em apenas um ano acontece o rompimento. Ficará celibatário até ao resto dos seus dias.
Podem ter observado que tudo que Kierkegaard pensa ele sente na pele. Daí o termo existencialista para defini-lo. O estágio a seguir seria o Ético. Este consistia em deixar a concupiscência e se atentar para práticas morais mais elevadas, sempre objetivando o bem, a partir das suas condutas. Aí o recurso à razão e à filosofia, no entendimento de que discussões carnais já não interessam àquele que pretende atingir um estágio mais elevado. Nesse processo, ele já atinge um patamar elevado, mas sempre observando as suas angústias e nunca querendo construir um castelo metafísico.
Como renunciou ao seu grande amor (Regina) e como não se interessa por status e sistemas universais, caminha para o estágio Religioso, que seria o seu último. Aqui o comportamento deve ser exemplar, abnegado e bondoso. Teólogo por formação, pressente o desespero e a angústia ao se perceber sozinho no mundo. Reflete sobre a pós-morte, e faz a aposta de Pascal (acreditar ou não em Deus, se acredito e ele existe com a vida pós-morte, o.k., se ele não existe e após a morte é apenas o fim, ao menos a conduta humana foi elevada e sensata). O extraordinário de Kierkegaard é que ele faz uma brilhante interpretação acerca da angústia pelas quais passaram os mártires.
Uma de suas mais brilhantes investigações foi acerca do sacrifício do filho de Abraão, Isaac. Esta belíssima e atroz passagem bíblica diz respeito a Deus ter enviado um anjo à casa de Abraão, um homem temente a Deus, e exigir que o pai sacrificasse o filho no alto da montanha, ao invés de uma ovelha. No ato final, o anjo irá deter a mão do pai, que estava em vias de assassinar Isaac. O que Kierkegaard investiga é acerca do conceito de angústia com o qual o pai passou a sofrer a partir do momento em que recebeu a missão.

É que em histórias clássicas deste género, geralmente as lemos sem a afetação comportamental e sem a devida investigação acerca da personalidade do sujeito. Mas Kierkegaard coloca Abraão num divã e investiga as suas dores e angústias. Fico aqui imaginando os sentimentos de medo, angústia, as dores e chagas de Jesus de Nazaré momentos antes da sua crucificação; já pararam para pensar sobre isso? Não à toa, “o filho de Deus” clama ao Pai que, se possível fosse, afastasse dele aquele cálice.
Aliado à angústia, o conceito de desespero é tema recorrente na filosofia do dinamarquês. Inaugura essa percepção ao se entender como contingente e pequeno demais neste mundo de meu Deus. É por intermédio da razão que vislumbra a liberdade, e essa conquista que o faz afastar-se de todos, ao mesmo tempo que lhe rende dissabores mediáticos. Sentindo que Copenhaga era uma roça perto de Berlim com a sua vastíssima tradição filosófica, chega a ser snobe afirmando que intentava mudar-se para a Alemanha, pois só assim poderia filosofar e encontrar interlocutores à altura.
Os jornais não lhe perdoaram essa impertinência e passaram a ridicularizá-lo em charges que o apresentavam de calças curtas. Fazendo uma brincadeira adaptativa, tirando dois ou três filósofos aqui no Brasil, tenho percebido que “a Terra de Cabral” é a minha Copenhaga.
Mas nada que abalasse a serenidade do pensador, ainda para mais ao longo da sua vida ele caminhou pela estrada dos três estágios, e certamente retirou-se de discussões mundanas e panorâmicas. Avesso ao alarido das multidões, proclamou solenemente: “A multidão é a mentira!“. Morreu em 1855 e nestes breves 42 anos, certamente não pensou que o tempo lhe faria justiça e o referendasse como um dos grandes da Filosofia, antecipando os estudos filosóficos que passaram a prescindir de grandes esquemas metafísicos, afinal, o importante é cuidar da nossa casa a partir das nossas palavras e atitudes. Um filósofo magistral!
Para aqueles que desejam se aprofundar mais, indico o já citado “Diário de um Sedutor”, “O Conceito de Ironia“, “Temor e Tremor“, “O Conceito de Angústia” e “Estádios no Caminho da Vida“.
“A maioria das pessoas vive por demais inconscientes de si para suspeitar quais sejam as consequências. Devido a uma ausência do vínculo profundo do espírito, a sua vida, seja por encantadora ingenuidade infantil, seja por necessidade, não é mais do que uma mistura sem nexo de um pouco de ação, de acaso, de acontecimentos“.
Trecho de “O Desespero Humano”
2 thoughts on “Sören Kierkegaard: O filósofo solitário em Copenhaga”