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Jean-Paul Sartre (1905-1980) é o multifacetado intelectual francês: professor, escritor, filósofo, jornalista, conferencista, militante político e homem da imprensa, também foi um competente dramaturgo e não fica atrás das suas outras destacadas obras e atribuições: se “O Ser e o Nada” entrou para a História da Filosofia como um dos grandes tratados do século XX, a trilogia “Os Caminhos da Liberdade“, em que mistura conceitos de romance e existencialismo, mais “A Náusea“, obra-prima do sentimento de vazio, expressam aquilo que ele produziu de melhor. É chegada a hora de voltarmos os olhos para a dramaturgia, e uma das suas peças mais célebres é “A Prostituta Respeitosa”.

Sartre enamora-se dos Estados Unidos e faz algumas conferências lá. Faz interlocuções e é instado a opinar sobre a discriminação racial naquele país. Nada mais natural que se inspirar para escrever uma peça, sendo que esta conta a história de uma prostituta, Lizzie, que faz um programa com o filho de um senador, Fred, e está às voltas com um dilema: sabe do interesse deste em que testemunhe inocentando um primo seu que é branco e acusando um negro, pedindo para que ela afirme que foi violada por ele. As sentenças são duras e retratam o forte preconceito observado pelo autor nos Estados Unidos àquela época, cito:

Que só me resta correr em círculos até que me apanhem. Quando brancos que não se conhecem começam a conversar entre si, é sinal de que um negro vai morrer. (Pausa.) Diga que eu não fiz nada, dona. Diga ao juiz; diga ao pessoal do jornal. Talvez eles imprimam. Diga, dona, diga!

(Este diálogo ocorre quando o negro vai a casa de Lizzie pedir auxílio).

Trailer da peça teatral “A Prostituta Respeitosa”, com texto de Jean-Paul Sartre

Lizzie tem um linguajar e atitudes de puta mesmo. Com uma bracelete de cobra que diz trazer-lhe azar, mas sentindo-se compelida a usá-lo, discute com o seu cliente da noite o quanto vale. Ao ver que o filho do senador atribuiu aos seus préstimos 10 dólares, fica enfurecida. Ela tentava ao menos 40, quem sabe 20. Estranhamente, Fred começa a comportar-se como um rapaz mimado e chega a pensar que foi enfeitiçado pelo demónio que era Lizzie.

Diálogos ríspidos e embates, esclarecendo Fred a questão de que ela devia incriminar o negro, afinal, que importância tem um negro em comparação a um honrado homem branco que emprega vários funcionários e é um cidadão exemplar, pois fora este que cometera o crime no comboio, dando um tiro num outro negro. Fred também fica incomodado com as viscosidades e líquidos retidos na cama, e pede a Lizzie para que cubra aquela sujeira. Ela o inquiri acerca do amorzinho gostoso que fizeram e isso só o irrita ainda mais.

A questão está neste pé quando entra o senador Clarke, que com boa oratória e persuasão a convence a assinar uma confissão de que fora violada e que o seu sobrinho era inocente. Ele vai enredando-a numa teia de relações familiares, mostrando uma fotografia da pobre senhora adoecida e que sofreria bastante com o infortúnio do parente. Lizzie sente-se embromada e momentos depois da saída do senador, arrepende-se e fica angustiada com a sua atitude, pois contradizia o seu ideal de honradez. Ela podia ser puta, mas era honesta.

Um dos argumentos do senador, que convenceram a prostituta:

O outro, ao contrário, esse Thomas, matou um preto, e isso não está certo. Porém tenho necessidade dele. É cem por cento americano, descendente de uma das nossas famílias mais antigas, fez os seus estudos em Harvard, é um oficial – preciso de oficiais – , emprega dois mil operários na sua fábrica – haverá dois mil desempregados se ele vier a morrer – , é um chefe, uma sólida muralha contra o comunismo, o sindicalismo e os judeus. Ele tem o dever de viver, e você, o dever de conservar-lhe a vida. Isso é tudo. Agora, escolha.

A esclarecer que a peça foi publicada e encenada em 1946, é interessante observarmos a atualidade destas questões raciais no caso George Floyd (1973-2020), assassinado por policiais pedindo clemência uma vez que não estava a conseguir respirar. Fica a questão: até quando discriminaremos os negros que sobrevivem nas favelas brasileiras, em trabalhos mal pagos nos serviços menores em Lisboa e outras ocorrências mundo afora?

O escritor francês Jean-Paul Sartre

Com uma escrita crua e direta, Sartre captou bem o espírito da sua época, e nesta peça podemos refletir bastante sobre vários temas. Se o negro em questão consegue salvação, um outro é linchado por uma turba ensandecida e fica a moral de que a aplicação da “justiça” é sempre necessária, numa cidade no sul dos Estados Unidos de 40 mil habitantes, notadamente dividida entre as etnias.

Ao fim ao cabo, Fred declara-se a Lizzie, afirmando ser ela o demónio que o enfeitiçou e dar-lhe-á uma vida honrada, daí certamente o epíteto “respeitosa” com a qual será classificada, afinal, um filho de senador com excelente reputação saberá mascarar o passado da sua futura esposa. Vejam o desabafo dele:

Que é que você fez comigo? Está grudada em mim como os meus dentes às minhas gengivas. Eu vejo-te em toda parte, vejo o seu ventre, seu ventre sujo de cadela, sinto o seu calor nas minhas mãos, o seu cheiro nas minhas narinas. Eu corri até aqui e não sabia se era para te matar ou para te pegar à força. Agora eu sei. (Ele solta-a bruscamente.) Contudo eu não posso ficar a sofrer por uma puta. (Volta-se novamente para ela.) É verdade o que você me disse hoje de manhã?

Do livro que tenho, publicado pela Editora Papirus, com as suas 158 páginas, emerge uma mensagem incómoda e tristemente, atual.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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