A perspectiva epistemológica grega traduz «narcisismo» como o amor que um sujeito sente por si próprio. Nesse prisma, há a destacar certos aspectos essenciais que o descrevem: a) por um lado, há a substituição do amor dito objectal pelo amor narcísico, ou seja, reprime-se o investimento instintivo humano nessa matéria, algo amplamente verificável, por exemplo, na obra pessoana, em particular com Alberto Caeiro. E tudo isto é verificável, precisamente, na busca incessante do sujeito por uma imagem idealizada de si mesmo, imagem essa que nos é esclarecida pela expressão artística de “Narciso” (Caravaggio, 1599), a contemplar-se sobre o seu próprio reflexo, numa procura sem fim por aspectos de ordem ilusória, efémera e de intangibilidade.
Freud, concretamente, usou o termo ‘narcisismo’ para definir o estado de amadurecimento psico-sexual que procede, precisamente, ao auto-erotismo e que precede, de facto, o estado de amor pelo objecto, no qual existe um aprofundamento do nosso desejo (libido) sobre o próprio ego, numa clara objectificação do prazer do corpo. Isto é, de uma forma ampla, o narcisismo pode classificar-se como uma manifestação sentimental de auto-valoração, sob o efeito de auto-imagem, sem pôr de parte o eco que a auto-estima tem em relação a este primeiro aspecto.
Deste modo, e agora fazendo a devida, e possível, contextualização com Alberto Caeiro, este demonstra, claramente, uma valorização excessiva do chamado self. Por este prisma, e uma vez que Lacan estudou a humanização do amor narcísico, proveniente, precisamente, do chamado “estado de espelho”, através do qual a criança está perante uma alienação profunda da imagem que a figura maternal reflecte dela própria, demonstrando que ela ama, efectivamente, na figura materna, a imagem que tem de si. E é, concretamente, essa imagem que será um organizador pleno do seu futuro estrutural e esquemático – precioso, portanto, para o progresso de uma identidade psíquica de manifesta coesão.
Assim, a heteronímia pessoana enquanto fenómeno psíquico, filosófico e criativo, com particular destaque através da figura de Alberto Caeiro, provém, na sua essência, de uma espécie de Desassossego primitivo, no qual o sujeito projectou noutros ‘eus’, num profundo narcisismo, a sua complexidade e multiplicidade humana, no seguimento das ideias lacanianas.


Por conseguinte, o próprio (Lacan) propõe a psicanálise da sociedade, através dos seus valores, princípios, crenças, etc., e a partir da validação da opinião do outro como reflexo de nós próprios, precisamente tendo em vista “o outro como espelho”, e transpondo a ideia de que o real é tudo o que não é simbolizável, isto é, tudo o que não é transposto através da linguagem. Assim, o que Lacan propõe são padrões/planos ficcionais, onde manter a ordem do discurso e da realidade passa por uma interacção e uma espécie de equilíbrio de forças.
No entanto, era defensor que a verdade profunda das coisas só advinha de uma loucura do sujeito, a partir da qual não há filtro e, portanto, só a pureza da verdade. Outra questão tem que ver com o desejo enquanto linguagem ficcionada – isto é, arbitrária e uma aproximação ao real –, que visa projectar “imagens”. Desta forma, o valor da palavra pressupõe que o ser humano projecta desejo a partir da linguagem. E o narcisista retira, precisamente, esse prazer a partir de uma linguagem metafórica de si, divinizando a sua própria figura enquanto imagem do infinito.
Deste modo, Caeiro não vai além do dito realismo sensorial, numa defesa profunda de que “a sensação é a única realidade para nós”. Ou seja, defende uma espécie de libertação de tudo o que possa vir, porventura, perturbar essa sua “captura” ingénua e limpa da realidade. Desta forma, esse “puro sentir” faz uma saudação ao que é breve e transitório – à nossa própria existência, portanto –, numa ligação contínua para com a mera e despreocupada fruição da Natureza envolvente.
Para Caeiro, o mundo só existe enquanto sensação de si mesmo, num esforço panteísta de divinizar a Natureza das coisas, desvalorizando a ordem conceptual de «tempo». Isto é, para si, o tempo emerge como eterno, único, resultado de infinitos instantes do presente, numa relação íntima e de harmonia com a Natureza (de si).
Assim, como podemos ver, o termo narcisismo tem, de facto, uma beleza intrínseca que espoleta, artisticamente e não só, uma panóplia de emoções e sentidos.
Pela beleza do pensamento.
Excelente o seu artigo! Remeti à corrente existencialista francesa, em alguns pontos. Confesso que irei estudar mais essa faceta do grande Fernando Pessoa. Muito bem concatenada as ideias. Aprendi um pouco. Parabéns!
Muito obrigado pelo seu comentário. Também tenho aprendido bastante com os seus artigos e fico mesmo muito contente por fazer parte desta equipa fantástica que é o Barrete. Abraço! Fique bem