“Existo. É suave, tão suave, tão lento. E leve: dir-se-ia que isso flutua no ar por si só. Mexe-se. São leves toques, por todo lado, toques que se dissolvem e se desvanecem. Suavemente, suavemente. Há uma água espumosa na minha boca. Engulo-a, ela desliza pela minha garganta, me acaricia – e eis que renasce na minha boca, tenho perpetuamente na boca uma pequena poça de água esbranquiçada – discreta – que roça a minha língua. E essa poça também sou eu. E a língua também, e a garganta, sou eu”
“A Náusea”
“A Náusea” (Editora Nova Fronteira, 259 p.) de Jean-Paul Sartre (1905-1980) é um livro de 1938 que narra a vida insonsa de Antoine Roquentin, um intelectual pequeno burguês que se retira para fazer uma tese académica sobre um obscuro personagem histórico (o Marquês de Rollebon) na cidadezinha de Bouville. O livro é escrito em forma de diário e apresenta-nos desde breves relatos a explanações mais elaboradas, tudo circunscrito à vida medíocre do seu protagonista.
A náusea assume um aspeto metafísico e não significa apenas o asco, o enjoo e o mal-estar físico. Ela é sobremaneira existencial, geradora de angústia e faz perceber a sua presença no mundo de Antoine, que é bastante intuitivo nessa perceção, mesmo que tente driblá-la com os seus afazeres ordinários. A tese assume um aspeto emergencial e faz-nos refletir acerca da inutilidade de todas as teses académicas propostas, que servem mais ao ego de quem as produziu e que não obtêm, no mais das vezes, a leitura e atenção de seis indivíduos. Imagino sempre uma biblioteca cheia de teses, onde se sobressaem mais os nomes dos autores. Mas vamos parar de divagar e retornemos à vida de Antoine.

A tese não caminha bem, aos poucos o nosso anti-herói vai escrevendo no seu diário aspetos ordinários do seu quotidiano, e tudo de maneira depressiva e fria. Um adendo: Sartre havia colocado o título de “Melancolia” no romance, mas os seus editores da Gallimard entenderam que o título não venderia bem, portanto, ficou “A Náusea”. Mas o certo é que melancolia é o sentimento que transcorre em todas as páginas do diário.
Da mesma forma que nos adaptamos a certa rotina nos lugares estranhos aos quais somos designados passarmos uma temporada, o nosso estudioso se esbarra com o Autodidata, um freguês assíduo do bar café que ele frequenta e passa a examinar o tipo. O personagem é uma crítica ferrenha de Sartre ao academicismo e as conversas são breves e surreais.
De saco cheio e morrendo de tédio, espreitado pela náusea o tempo todo, Antoine faz digressões filosóficas e entende que ele era demais para o mundo. Mas não cabe aqui nenhuma ideia de arrogância, antes se trata de uma constatação da sua insignificância (ou vice-versa) e tanto os objetos como as pessoas se manifestam confrontando as vicissitudes do nosso herói. Parece estar fugindo da namorada Anny, e do seu sentimentalismo rancoroso. Mas é no papel de observador do mundo à sua volta que a sua narrativa se torna mais divertida.
Uma delas é quando analisa o jogo de cena entre dois namorados que, após desempenharem todo o ritual de flertes estarão nus numa cama (essa a intenção última), mentindo para si mesmos e convivendo com as suas viscosidades e membros agora flácidos, conseguem imaginar coisa mais repugnante que isso? Transpõem isso para as suas vidas e sejam sinceros consigo mesmos: por que não vão todos trepar, evitando o jogo ridículo dos encontros?
Antoine passa mal. A náusea o espreita, ela está ali naquele castanheiro do jardim. A existência do castanheiro é a mesma que a daquele banco onde está sentado, vê e pressente a baba que se forma na sua boca e isso tudo é o absurdo da existência. Nesse mundo sem Deus, o que significa existir? Quando retorna ao bar, faz digressões sobre a sua mão e o canivete. E se fincasse o canivete na mão para ver jorrar um pouco de sangue e sentir o vermelho e a viscosidade? Se fosse a um psiquiatra, este aventaria a possibilidade de Roquentin não estar no melhor dos seus dias.

O livro é gostoso, vai-nos embalando no ritmo do diário e a guisa da analogia observamos várias das nossas tarefas rotineiras chatas. A náusea acompanha-me e persegue-me, é preciso não lhe dar importância. O protagonista aventa a importância do seu pesquisado como possibilidade de ser um atestado para a sua existência, cito:
“O Sr. de Rollebon era meu sócio: precisava de mim para ser, e eu precisava dele para não sentir o meu ser. Eu fornecia a matéria bruta, essa matéria que eu tinha para dar e vender, da qual não sabia o que fazer: a existência, minha existência. A parte dele consistia em representar. Ficava em frente a mim e se apoderara da minha vida para me representar a dele“.
Adendo: agora irei sair. Tenho que tratar de algumas questões pecuniárias, fazer algumas compras e preparar o almoço. Retornarei em breve (hoje ainda) para finalizar este texto. Sinto que a náusea me acompanha.
Retornando… Antoine Roquentin segue observando e anotando no seu diário. Das coisas mais ordinárias a investigações filosóficas das mais profundas. Nada para salvar a alma, esta nem existe, o negócio é dar conta da existência mesmo. Percebe-se aqui que Sartre, o alter ego de Roquentin, já expressa a sua filosofia diluída nos seus romances (caso deste “A Náusea”), nas suas peças de teatro, como na sentença “O inferno são os outros” e claro, na sua filosofia, quando posteriormente escreverá o seu maçudo e enigmático “O Ser e o Nada“.
Esse mal-estar acerca da civilização e as suas crenças é o que oprime o homem libertário, pois está adoentado pela extrema racionalidade e sentimento de vácuo oriundo das coisas. Mais à frente, mais sentenças de “A Náusea”:
“Mas para mim não existem segunda-feira nem domingo: existem dias que se atropelam desordenadamente e, além disso, lampejos como esse. Nada mudou e, no entanto, tudo existe de uma maneira. Não consigo descrever; é como a Náusea e no entanto é exatamente o contrário: finalmente acontece-me uma aventura e, quando me interrogo, vejo que me acontece que sou eu e que estou aqui; sou eu que fendo a noite, estou feliz como um herói de romance“.
Esse mundo sem Deus, entregue ao acaso e onde sentimos todo o peso de existir, é marca indelével de Sartre. Quando a desesperança nos acomete e nos sentimos perdidos no mundo, bebendo o vazio do nosso ser, a melancolia nos bate e para não ficarmos com aquele sentimento de que “todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso“, deixo a pista para uma saída encontrada por Roquentin para suportar o acaso dos dias.
Quando está no bar e ao ouvir uma canção na vitrola, para e ouve-a com atenção e deleite. Pede à dona do bar que repita a canção e chega à conclusão de que aquela música perduraria, vencendo o acaso e o tempo.
Ler “A Náusea” também nos proporciona este além do tempo. Como uma autêntica obra de arte literária que chega a ser desconcertante para as nossas vãs esperanças, afinal, “estamos sós e sem desculpas“.
Um livro maravilhoso, que deixou uma cicatriz no meu espírito!
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3 thoughts on ““A Náusea”: Perturbador e profundo”