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Um dos casais mais icónicos do século XX, Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986) eram unha e carne. Figuras pop e emblemáticas, ditaram muitas das discussões intelectuais do século, abrangendo áreas da política, comportamento, filosofia e até moda (por que não?). De forma que até as reiteradas idas aos cafés, aos clubes de jazz e a distribuição de jornais em praça pública só os aproximaram mais do público. Uma vida nada convencional e bastante glamorosa, podendo significar taças de vinho no Café de Flore símbolo de um jeito existencialista de se levar a vida. Não que fossem fúteis, nada disso, pelo contrário, foram intelectuais que saíram dos seus gabinetes para agir na esfera pública.

Mas tudo tem um fim e no livro diário “A Cerimónia do Adeus, seguido de Entrevistas com Jean-Paul Sartre (Agosto-Setembro 1974)” (Editora Nova Fronteira, 1982, 578 páginas), Simone expõe o drama que foram os últimos anos da vida de Sartre. Doente acometido pelo diabetes, cego e com incontinência urinária, ele foi cuidado por Simone que revelou o seu aspeto humano ao se confessar esgotada com tantas idas e vindas, verdadeiros sustos de quase morte do autor de “A Náusea” e do seu suspiro aliviado quando o adeus enfim ocorreu, em 1980, num cortejo que parou Paris com um público, notadamente de jovens, cerca de 50 mil, que se foram despedir do último intelectual francês da moda.

A escritora francesa Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir

Li atentamente o diário e isso só me fez perceber a extrema e necessária racionalidade de Simone. É muito fácil auxiliarmos alguém de longe, até financeiramente, mas ao cuidarmos de um enfermo pegamos literalmente “o boi pelos chifres”. Nesta passagem observamos o tom do relato:

Logo perguntei ao Professor Housset quando poderia sair. Ele me respondeu com hesitação: ‘Não posso dizer… Ele está frágil, muito frágil.’ E, dois ou três dias depois, disse-me que Sartre tinha que descer novamente para o serviço de recuperação: somente lá podemos vigiá-lo vinte e quatro horas por dia, de modo a afastar qualquer risco de acidente. Sartre não gostava de lá estar. Quando Sylvie foi vê-lo, Sartre disse-lhe – como se se tratasse de um hotel onde passasse uma temporada: ‘Aqui não está bom. Felizmente vamos partir em breve. Agrada-me a ideia de ir para uma ilhazinha.’

Na verdade, já não se cogitava de ir para Belle-Ile: suspendi a reserva de quartos que fizera. O doutor queria ter Sartre ao alcance da mão, para o caso de nova crise. Mas levaram-no para um quarto maior e mais claro do que o primeiro: ‘É bom,’ disse-me ele, ‘porque agora estou bem perto de minha casa.’ Ainda acreditava vagamente ter sido hospitalizado, de início, nos arredores de Paris. Parecia cada vez mais cansado; começava a apresentar escaras e a sua bexiga funcionava mal: foi preciso colocar-lhe uma sonda e, quando se levantava – o que agora era muito raro – arrastava atrás de si um saquinho plástico cheio de urina.

De quando em quando, eu saía do quarto para deixar entrar uma visita: Bost ou Lanzmann. Ia então sentar-me numa sala de espera. Foi lá que ouvi o Professor Housset e um outro médico, falando entre eles, pronunciarem a palavra ‘uremia’. Compreendi que Sartre estava desenganado e sabia que a uremia acarreta frequentemente sofrimentos atrozes; comecei a soluçar e atirei-me aos braços de Housset: ‘Prometa que ele não se verá morrer, que não sentirá angústia, que não sofrerá!’ ‘Eu lhe prometo, senhora’, disse-me com gravidade. Um pouco mais tarde, como eu tivesse voltado para o quarto de Sartre, ele chamou-me. Disse-me no corredor: ‘Quero que saiba que não lhe fiz uma promessa vã: eu a cumprirei.’

Os médicos explicaram-me, depois, que os seus rins já não eram irrigados e, portanto, não funcionavam mais. Sartre ainda urinava, mas sem eliminar a ureia. Para salvar um rim, teria sido preciso uma operação que ele era incapaz de suportar; e então seria no cérebro que o sangue já não circularia adequadamente, o que acarretaria a demência. Não havia solução e não ser deixá-lo morrer em paz.

Durante os poucos dias seguintes, ele não sofreu: ‘Há apenas um momento um pouco desagradável, pela manhã, quando fazem o curativo das minhas escaras’, disse-me, ‘mas é só isso’. Tais escaras eram terríveis de ver (mas, felizmente, ele não as via): grandes placas violáceas e avermelhadas. Na realidade, por falta de circulação sanguínea, a gangrena atacara a sua carne.

Dormia muito, mais ainda falava comigo com lucidez. Por momentos, podia-se acreditar que esperava sarar. Como Pouillon tivesse ido vê-lo num dos últimos dias da sua doença, ele pediu-lhe um copo d’água e disse-lhe alegremente: ‘Da próxima vez que bebermos juntos, será em minha casa e com uísque.’ Mas, no dia seguinte, perguntou-me: ‘Mas como faremos com os gastos do enterro?’ Logicamente, protestei e tergiversei quanto aos gastos da hospitalização, garantindo-lhe que o seguro social se encarregaria deles. Mas compreendi que se sabia desenganado e que isso não o transtornava.

Voltava, apenas, à preocupação que o atormentara nos últimos anos: a falta de dinheiro. Não insistiu, não me fez perguntas sobre a sua saúde. No dia seguinte, de olhos fechados, tomou a minha mão e disse: ‘Amo muito você, minha querida Castor.’ A 14 de abril, quando cheguei, ele dormia; acordou e disse-me algumas palavras, sem abrir os olhos; depois estendeu-me a boca. Beijei sua boca, seu rosto. Ele voltou a dormir. Essas palavras, esses gestos, insólitos nele, inscreviam-se, evidentemente, na perspetiva da sua morte.

O casal “da moda”: Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre

Se vale a máxima de que morre o homem, mas fica a lenda, o certo é que a composição deste livro é perfeita neste propósito: após as dolorosas 168 páginas deste calvário, somos brindados com uma entrevista de altíssimo nível, sendo Simone a entrevistadora do seu amado. E o que é bonito em Sartre é que ele não receia ter que fazer algumas revisões dos seus conceitos, admitir os seus muitos erros e encaixar-se perfeitamente no papel que sempre quis para si: de ser o intelectual preparado a dar qualquer resposta, mesmo que em muitos casos apressado demais para assumir causas populares das quais se arrependeria depois. Sartre representava um papel e sempre o fez muito bem.

Mais esta polémica na vida de Simone seria café pequeno para ela, pois o livro levou muitos a acreditarem que ela havia traído e sido desrespeitosa com Sartre, expondo as suas vísceras. Compreendo que ela fez terapia, e quando publicada a obra logrou extraordinário êxito e não vejo, sinceramente, nada demais nisso. Não a entendi como oportunista, penso que todo autor sabe perfeitamente o conteúdo que deseja expressar. Mais uma vez, corajosa essa Simone!

Não sei se as edições mundo afora trazem este diário separado, mas julgo que a edição da Nova Fronteira ficou perfeita no seu propósito. Um verdadeiro livro de cabeceira.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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