OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Asilo pequeno num bairro distante da cidade. Casa com quatro cômodos apenas; por mais que as voluntárias se esforçassem para manter certo ar de dignidade, o lugar cheirava a merda. Campanhas feitas pela associação de bairro, pelos paroquianos e por todos aqueles que sentiam pena, numa espécie de caridade cristã (mas desde que não fosse preciso visitar, apenas contribuir), os dias passavam de forma modorrenta e inerte. Num dos quartos, um beliche dividia espaço com uma cama. Na parte de cima do beliche, um velho amalucado e que proferia esquizofrenia aliado à megalomania.

Estava ali por intermédio da CIA, pois comprovara documentos secretos da NASA e, nessa loucura toda, o que atentava a seu favor era o facto de falar mesmo um inglês de fazer inveja a Barack Obama. Falava sem parar de teorias de conspiração. Abaixo, uma senhora de uns 70 anos que fora simplesmente esquecida pela família, se bem que não constituíra a própria e, sendo solteira, viu morrer aos poucos as irmãs e os irmãos e não se ressentia pelo fato de não ser procurada pelos sobrinhos. Na cama ao lado, um velho barbudo, recuperado a muito custo de um câncer de próstata, ressonava. A senhora o acordou:

— Ei preguiçoso, acorda! Alfredo nos diz que os Estados Unidos estão para jogar uma bomba aqui.

— Antes fosse – responde.

— E não se preocupa? – a senhora insiste.

— Na verdade, não. Pouco me importa.

Alfredo entra na conversa:

— Fico preocupado é com o efeito colateral. Podem arrasar o quarteirão. Sei que a NASA tem arquivos de naves alienígenas e, quando descobri esses documentos, fui detido e levado para uma prisão de segurança máxima. Guantánamo, acho. Sofri lá. Fiquei na mesma ala de terroristas iraquianos e sírios; a coisa toda é muito dura. Praticavam em mim a técnica de afogamento, não sei como consegui escapar.

Todos já estavam cansados de ouvir essa história e o outro pediu para que ele ficasse em silêncio. Uma enfermeira voluntária, que vinha toda quarta-feira, anunciou o café da tarde, ou o que podia ser considerado assim. Em copos americanos encardidos, um café ralo e pão dormido, doado pela padaria de bairro que anunciava em banner esses donativos. O velho reclamou:

— Na próxima, pede à padaria para financiar uma chapa para passar o pão. Não é reclamar não, mas isso aqui está mais duro que só pessoas com bons dentes consegue comer.

— Molhe no café – sugeriu a voluntária.

E o café seguiu nesse pé, com Alfredo esclarecendo mais alguns pontos da sua teoria da conspiração. Quando perguntavam se o lugar mais indicado a ele não seria um hospício, anunciavam que ele era inofensivo, lúcido (até certo ponto) e divertido, até. Nesse antro de pobreza, com onze moradores ocasionais, reinava a miséria e autopiedade. Menos o velho, que passara a ser chamado assim e conseguira a credencial da maiúscula, o Velho. Aos poucos, o seu amargor e clareza de visão levavam a desesperança a todos, pois era do tipo que via as coisas como elas eram. Do epíteto de Velho a Sábio foi um pulo. Ridicularizava o padre que ocasionalmente vinha confessar e dar comunhão aos colegas; anunciava que a sua alma já estava condenada por pecados passados e pregava o ateísmo. Confrontava o padre com o bordão: “Onde estava o seu Deus quando me fez pecar a tal ponto que a minha miséria é continuar vivendo? Não sou cínico a ponto de dizer que me arrependi. Quando se tem certa idade, e o pinto não sobe mais, é fácil converter-se. Hipocrisia pura!”. E o embate só fazia crescer. Usando a psicologia a seu favor, o padre o deixara de lado. Mas se enfurecia com a frieza do Velho.

Seis da tarde e um velho radinho de pilha toca uma faixa AM qualquer. A senhora se mostra preocupada, “Tomara que eles consigam pilhas novas”, ao que o lunático preso pela CIA vaticina: “Deviam era arrumar um cabo de eletricidade. Mas sei que a CIA está por trás disso. Aposto que tentarão controlar as notícias que chegam aqui e por isso essa pilha intermitente. Vai acabar antes mesmo da Voz do Brasil“. O Velho pede para se calarem. E aquele cómodo fica impregnado de mau humor, azedumes e mal entendidos. A senhora anuncia que irá tirar a roupa para vestir o pijama, pede aos dois cavalheiros discrição e o Velho comenta:

— Quem gosta de muxiba é gato.

— Partindo de você, é um elogio – responde.

Há muito, o Velho deixara de ter certos pudores. Sua próstata arrombara-o, a ponto de não poder se sentar por quase um ano. No hospital, de fraldão e tudo o mais, perdera a dignidade de observar o seu próprio corpo e tudo o que sentia era asco, de si mesmo, das pessoas e do mundo.

A senhora vestiu o pijama, pegou uma revista qualquer e passou a folhear. Alfredo dirigiu-se ao Velho, perguntando:

— Sua filha vem te ver quando?

— Não sei ao certo, talvez nunca mais. Mas não a culpo.

— Eu não tive a sorte de ter família. Também, fiquei quinze anos preso em Cuba e ademais, eu já pressentia que, por saber demais, bem cedo não quis constituir família.

Com o seu notável mau humor, o Velho chiou:

— Cala a boca, Alfredo! Já estamos cansados dessa lenga-lenga. Bem disse o Sartre que “o inferno são os outros”. Já estamos de saco cheio dessa baboseira toda.

Jean-Paul Sartre

— Você é iludido! Quando a CIA detonar esse abrigo, espero que sobreviva com muitos ferimentos só para chegar à conclusão de que eu estava certo.

— Espero isso sim. Mas desde que você morra ao invés de ficar falando, falando, falando…

— Vocês dois – interveio a senhora – comportem-se. São amigos e não podem ficar falando assim um com o outro.

— Maluco de merda! – sentenciou o Velho.

— Iludido! – respondeu Alfredo.

E ficaram nesse resmungo pela noite toda, sendo Alfredo o último a pregar os olhos, isso pelas cinco da manhã, quando acordara a senhorinha. Tinha em mente que precisava ficar atento a qualquer investida dos norte-americanos que queriam, sim, silenciá-lo. Dormiu até as onze.

Luísa Gates ligara para o namorado. Nada. Ligara novamente. Nada. Deixara recado no perfil falso. Até agora nada. Mas nada que a preocupasse muito. Estava imersa no Facebook, postando, postando e postando. Seus professores já a haviam largado de lado. Ela não tinha jeito mesmo. Com olhar obsessivo e vidrado, com os seus mais de quatro mil amigos virtuais, e já que sua mãe parecia não ligar, o que poderia ser feito? Os professores já haviam sido avisados pela direção que era caso perdido.

Márcia ficara satisfeita com a Parada do Orgulho Gay em BH em julho último e com o resultado das oficinas preparatórias para o evento do ano seguinte. Apoiada por Chris, este ressentido ainda com os insultos de Gregório e com o sumiço do namorado oficial, Márcia encontrara psicólogos, filósofos e outros estudiosos que acrescentaram muito conteúdo às oficinas. E isso para contrapor à festa em si, ao desfile que esbanjou alegria, postura e atitude. Os hotéis do centro ficaram lotados; o público gay no Brasil já respondia por um consumo exigente e o mercado conseguiu abarcar essa festividade no calendário. Márcia tratava agora de editar a sua revista, feminista, diga-se de passagem, sendo os artigos todos com tendência a demonizar o homem. “Não Se Deixe Dominar Pelo Homem”; “A Mulher E O Seu Sagrado Direito de Gozar Primeiro”; “Homem: Para Quê Precisamos Deles?”; “Quando Soubermos Trocar O Gás De Cozinha E Trocar Os Pneus, Será O Fim Da Hegemonia Masculina”; “O Futebol Feminino Deveria Ser Mais Valorizado Que O Masculino”; “Salários Iguais Para Funções Iguais”; “Exigimos Homens Sensíveis” e mais um editorial escrito por ela defenestrando o sexo forte. Chris, alma sensível, e se sentindo uma mulher, a apoiava e revelava a preocupação com o namorado que não mais atendia às suas ligações e que se mudara do apartamento sem deixar recado. Márcia o confortava e, confidente que o amigo era o passivo, vaticinou:

— Ele é o machão, de certa forma. Não pôde perdoar o seu deslize, que, aliás, foi uma bola fora, desculpe-me, mas tenho que te dizer. 

— Não. Você está certa. Não sei o que me dá, às vezes…

— Quer desabafar?

— Não é bem um desabafo, é uma constatação. Sou uma pessoa má, isso sim, sou uma pessoa má. Sou sujo…

— Epa! Peraí. Também não precisa se jogar pra baixo desse jeito.

— Não, Márcia, preciso sim. Só faço admitir as coisas que as pessoas pensam acerca de nós. Associam nossas opções com libertinagem. Depois de muito tempo perdido, encontrei um namorado. Gostoso, sensível, compreensivo. Fechei com ele. Mas não sei o que me dá, gosto de me sentir sujo às vezes…

— Não esquenta não. Isso é coisa da Psicologia. Você está se descobrindo ainda.

— Mas magoo as pessoas. Isso não é certo…

— Todos nós magoamos as pessoas e somos magoadas por elas. São coisas da vida mesmo.

Chris tentou outra ligação, mas deu caixa postal. Realmente, o seu namorado rompera com os seus atos inconsequentes. Despediram-se e Márcia foi à sua casa, abraçou a mãe idosa, foi ao seu quarto, ligou o computador e escreveu o editorial da revista:

Mulheres no Centro do Poder

Márcia Ticiano

O surgimento desta Revista é uma necessidade nesse período machista dos dias atuais, onde o homem, cercado de insegurança, se vê no propósito de continuar dominando a mulher. Ao longo dessas páginas, vocês associarão o homem à força bruta, em detrimento à nossa feminilidade, ao nosso carisma e inteligência invulgar. Chamamos a atenção e resumimos aqui os seguintes textos: em “Não Se Deixe Dominar Pelo Homem”, Sara Albuquerque, renomada advogada criminalista, expõe com lucidez os desafios de mulheres que têm que evitar a violência indiscriminada pelos machões que as violentam de todas as formas. Em “A Mulher E O Seu Sagrado Direito de Gozar Primeiro”, Valéria Dias Ribeiro esclarece uma prática que deixa os homens perplexos. Exige sexo oral como preliminar e, como já possui a característica de gozar primeiro, inunda a boca do parceiro e consequência, perde-se todo o clima da transa, uma vez que o homem, após a gozada dela, pode quando muito transar com uma boneca inflável. A meu juízo, Valéria é um modelo de feminilidade e que deveria dar cursos nas melhores universidades. Já no “Homem: Para Que Precisamos Deles?”, Maria João elucida a não necessidade de homens no planeta, pelo menos a partir do momento em que a mulher já consegue obter de bancos de espermas as soluções para suas vontades de ser mãe. Brilhante o artigo! No “Quando Soubermos Trocar O Gás De Cozinha E Trocar Os Pneus, Será O Fim Da Hegemonia Masculina”, a articulista intenta cursos mesmo para libertarem a mulher do serviço masculino. Nada que um bom macaco não resolva. E, para trocar o gás, a mulher deve ser macha o suficiente para virar a tramela e sentir, sim, o cheiro do gás, mas nada que vá explodir a casa. E ela apregoa inclusive a aquisição de botijões menores, para que a própria mulher possa carregar. Aí, sim, seria a eliminação total e inequívoca dos homens. No ensaio “O Futebol Feminino Deveria Ser Mais Valorizado Que O Masculino”, uma participação mais que especial: uma zagueira troncuda do time do Contagem afirmava, categoricamente, que se valia das peladas na quadra do bairro para chutar as canelas dos homens, distribuindo também socos, cotoveladas e pisões e se valia do código masculino que dizia para que não entrassem duro na atleta. Brilhante também este texto! E no artigo “Salários Iguais Para Funções Iguais”, Zulmira Fonseca, renomada advogada trabalhista, disseca a discriminação existente entre salários diferentes entre homens e mulheres para cargos iguais. E, finalizando, sobressai-se a lucidez e o bom gosto estético e de escrita no texto feito por Inês Garcia, “Exigimos Homens Sensíveis”.

E, no bojo disso tudo, só me resta afirmar que essa revista veio para ficar, e já estamos captando recursos financeiros junto a patrocinadores e entidades ligadas à defesa da mulher em todas as suas vertentes. Como a distribuição pretende ser gratuita, contamos com os espaços nas bancas das livrarias, restaurantes, lanchonetes, órgãos públicos etc. para mostrarmos a nossa força e senso de urgência em todas as nossas reivindicações.

Até o próximo número e, na foto abaixo, imagem de Simone de Beauvoir, que, afirmo, era muito mais macha que Jean-Paul Sartre.

Simone de Beauvoir

Angustiado. Sufocado. Gregório sentiu-se assim após os primeiros impactos de viagem tão proveitosa. Por mais que preparasse com esmero as suas aulas, por mais que se destacasse em aulas cada vez mais abrangentes, a seguir vinha o vazio e a solidão. Encerrava-se em seu quarto, no apartamento onde morava, e fugia de todo contato com Lorena, que o procurava insistentemente para saírem. Gregório sabia que ela era gostosa, uma fruta a ser colhida, mas se vira no dilema de ficar com a irmã do amigo, por mais que este não se importasse. Mas ele estava atormentado ainda pela morte de Carla, tentava decifrar códigos em frases entrecortadas da amiga no “Assim Falava Zaratustra” e não conseguia enxergar nada, apenas confusão mental e poesia. Racionalista ao extremo, cartesiano até, percebeu que estava perdendo o controle e refugiou-se na solidão. Vinham aí as férias e era a certeza da extensão de dias modorrentos e sombrios. Preocupou-se. Chegou a ler livros de autoajuda (não conseguiu ultrapassar as dez primeiras páginas de todos eles) e, a esmo, enviou e-mail a Andreia pedindo para conversarem. Uma semana depois, obteve resposta. Marcaram de se encontrar numa lanchonete no Palácio das Artes e Gregório se desarmou a tal ponto que pediu ajuda;

— Andreia, obrigado por aceitar meu convite. Toma alguma coisa?

— Água. Não posso mais beber café, o pastor desaconselhou.

Gregório viu que ela estava com feições serenas, calmas, sem olheiras e um brilho na pele que a mostrava em toda a sua plenitude. Se tivesse um espelho, observaria que o mesmo não se poderia dizer dele. Pediu duas águas, uma com gás e a outra sem, a garçonete serviu e Gregório tornou:

— Andreia, depois daquele encontro lá no Pátio Savassi, pus-me a refletir muito sobre você.

— Sim. No que, precisamente?

— Você parecia feliz. Radiante. Está feliz agora. Desculpe-me dizer, não me entenda mal, está radiante. Percebi que isso se deu após a sua conversão.

— É isso aí. Sou feliz! Simples assim. Difícil acreditar, né? Mas sou feliz!

— E como isso se deu?

— Como te disse, estava sofrendo muito. Perdida mesmo. Desencontrada. Não quis te ofender, mas você oferece apenas perguntas. E eu já tinha muitas perguntas. Precisava de respostas, consegui-as na igreja.

— Simples assim? – a voz de Gregório não denotava nenhuma ironia.

— Simples assim. Deus é amor e ele se revela na simplicidade. Ajudar aos outros, entende? Levar conforto a almas desamparadas. Desculpe-me professor, mas vejo que você está muito abatido.

— Realmente, há dias não durmo bem.

— E de que adianta ser um sujeito racional, parece que você se prende a essa coisa, quer ser forte e racional o tempo todo. O seu racionalismo o leva a não crer. Tem apenas as coisas materiais. Como não acredita em nada que não seja desse mundo, sofre. Não se conforta, pois sabe que a sua vida se resume a uma sucessão de dias e, desculpe-me afirmar, os dias vão se tornando repetitivos e você se descobre com mais perguntas e eu vou continuar falando de modo confuso só para você perceber a barafunda da sua vida; bem, você vai se repetindo, se cobrando, tenta encontrar sentido em coisas que não têm o menor sentido e Deus Nosso Senhor fica para escanteio, pois na sua vida você não é humilde a ponto de abrir as portas do seu coração para que ele te irradie de luz.

Gregório acompanhou cada frase, sopesou cada palavra, sentiu cada sílaba. Ao contrário de outras discussões, resignou-se e entendeu que sua vida era o vazio: lecionar, escrever para um jornaleco de bairro, intentar mudar o mundo (quando não conseguia nem mudar a sua própria vida), ter viajado a trabalho a Lisboa, sentir saudades extremas de Carla, refugiar-se em seu apartamento, antever as férias como suplício, onde teria todo o tempo do mundo para pensar na sua miséria, não conseguir dormir direito e estar obcecado com o livro deixado por Carla. Nem um chamado urgente o faria sair desse marasmo. Foi humilde:

— Andreia, tudo o que você disse tem sentido. Mas me diga uma coisa: como faço para acreditar em Deus?

— Abra o seu coração, isso basta!

— Não é bem fácil assim. Não se trata de vontade, trata-se de desígnio. Não consigo ter fé.

— Mas tem fé no homem?

— Como assim? – Gregório percebeu, de uma hora para outra, que a interlocutora tinha adquirido uma conversação filosófica séria, apesar do fanatismo religioso, que nesse encontro tentava dissimular o tempo inteiro.

— Quando leciona, acredita que as pessoas envolvidas no processo irão se transformar e transformar o mundo. Acredita que os seus textos de jornal e o seu livro serão um legado para as pessoas e o mundo. Também acredita que a sua razão irá te levar a um caminho seguro. Por isso debocha da fé, da religião, dos costumes, das crendices – sacou o artigo escrito por ele, sobre o macaco e Deus e leu alguns trechos, depois alfinetou – não vou te ofender, afinal, você aqui é que parece especialista na arte de debochar das outras pessoas. Mas, observe bem, você foi elegante ao tratar da nossa discussão lá naquela livraria, mas comparou Deus a um macaco! Veja bem, Gregório, comparou Deus a um maldito macaco.

Gregório não encontrou forças para se defender e nem para defender o macaco. Era irrelevante naquele momento. Admitiu certa ironia, disse que era necessário criar frases de efeito no texto para chamar a atenção e disse que o seu propósito era fazer as pessoas refletirem. Foi a deixa para Andreia sair por cima:

— Está vendo?! Mais uma vez a sua necessidade de querer mudar o mundo. Quem é você para querer que as pessoas reflitam? Fique com a sua inteligência para você apenas, isso deve bastar. Mas te adianto: você está apenas jogando sementes no asfalto. Sua razão é vazia, oca, esquisita, te faz sofrer. De que adianta ser um professor, um escritor, um filósofo que o diga, ou sei lá mais o que você acredita ser, e não ser feliz?

— Admito, não estou muito satisfeito com a minha vida.

— Mas é claro que não. E como poderia? Você não tem Jesus no seu coração.

— Andreia, diga-me então: eu faço o quê? – sem querer, Gregório pediu socorro.

— Vá à igreja junto comigo. Você fala com o pastor.

— Não conseguirei ir.

— Por quê?

— Porque não acredito. Simples assim. Não quero te confrontar, mas não consigo ter fé. E nem conseguirei de uma hora para outra – impercetivelmente Gregório adquirira manias que iam de coçar a cabeça a roer unhas, dentre outras esquisitices.

— Cuidado com a depressão, professor!

— Não estou deprimido. Passei por uma fase ruim, apenas isso.

— O suicídio da garota?

— Você sabe disso? – surpreso ficou.

— E quem não sabe? Dizem, desculpe-me te dizer, que você tinha um caso com ela.

Gregório estava com tanta força e energia para brigar que mais se assemelhava a um leão desdentado e arredio. Respondeu;

— As pessoas falam demais. Tinha um caso de amizade com Carla, apenas isso.

— Não disse que não era amizade. Você é que está se condenando.

— Carla era uma pessoa especial. Sinto muito a sua morte, então me responda, senhora Felicidade: se o seu Deus é tão maravilhoso assim, por que cargas d’água permitiu que uma jovem de 15 anos morresse?

— Ah, de novo a ironia. Sua marca registrada.

Gregório olhou Andreia nos olhos, e esta esclareceu:

— Deus é tão maravilhoso na nossa vida que nos dá o livre-arbítrio. Nós decidimos as nossas coisas, simples assim. Por exemplo, eu era infeliz até entrar na igreja evangélica. Quando entrei, e permiti que Jesus habitasse o meu coração, as coisas melhoraram para mim…

— E como o seu Deus permitiu que uma adolescente de 15 anos morresse?

— Não desvie do assunto. A culpa não foi dele. E nem é sua. Ela decidiu, e sabe por quê?

— Não. Por quê?

— Porque não tinha Deus no coração. Vi-a apenas uma vez, nesse mesmo lugar, no dia do lançamento do seu livro. Vi que ela parecia perdida, distante. Tinha vergonha da própria mãe, chegou a notar? Parecia enfadada com o mundo e as coisas. Olhou a todos nós do alto de sua montanha de indiferença e frieza. Não se preocupe, senhor filósofo, você não sabe ainda, mas ela já estava morta havia muito tempo.

— Você é muito observadora.

— Sim, sou. Aliás, ela era cópia sua. Consegue se lembrar das pessoas que estiveram aqui no seu lançamento?

— Claro. Até porque não foram muitas.

— Então, eu consigo. Lembra-se da senhora que estava com cancro? Conheci-a logo na entrada. Estávamos num grau de desespero tão grande que nos apresentamos chorando. E ainda houve aquela menina destrambelhada que tirou não sei quantas fotos do evento, que não conseguia levantar os olhos do celular, e havia também um homem esquisito que parecia estar aqui apenas para se esconder da chuva, depois entrou a mãe da menina morta, uma grã-fina que destoou do lugar, de tão chique que era…

— Sim – interrompeu Gregório – sei quem veio e os motivos.

— E então, me responda: todos pareciam humanos, gente de carne e osso que expressa sentimentos. Até aquela destrambelhada que ficou no celular o tempo inteiro. Só havia uma diferenciação, perdoe-me dizer: você e a menina morta.

— Dá para dizer o nome dela apenas? Carla.

— Pois bem, você e Carla. Você até tinha razão de ser: estava lançando o seu livro e tinha que fazer a pose de sabichão. Mas aquela garota?

— O que tem ela?

— Desculpe-me dizer, não quero sapatear na sua dor. Juro. Mas ela estava distante, perdida e quando olhava para nós parecia estar no alto de uma montanha. Julgava a todos nós. Parecia a sua assistente. Meio estranho.

— Impressão sua, Andreia, impressão sua. É como diz aquele ditado: “Depois da onça morta, todo mundo é caçador!”.

— Não entendi.

— É que depois que as coisas acontecem, fica fácil para julgarmos corretamente o passado.

— Mas lembre-se: você não pode se culpar de nada. Ela se matou por que quis, e já que você me perguntou, Deus deu a ela o livre-arbítrio.

— Aí fica fácil. Esse seu Deus é mesmo interessante!

— Nosso Deus, Gregório, nosso Deus! E não deboche mais dele, ele é tão generoso que sabe que você não faz por mal, deve rir de suas tentativas de negar a sua existência. Mas te digo: se você acreditasse, seria muito mais simples.

— Sim, muito mais simples, isso tenho que admitir.

— Pense a respeito e não tenha medo de mudar de opinião. Se quiser, te levo a igreja. Pense com carinho.

— Tá bom, irei pensar.

Despediram-se e Gregório pagou o consumo, dirigiu-se para o parque municipal e passou a observar o lago com os patos e marrecos.

Marcelo Pereira Rodrigues

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