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Porque A Arte Somos Nós

Antes de falar sobre Salvador Dalí: entre aquilo que é real e o que é desconhecido, ou mesmo impossível na nossa conceção humana, existe um mundo desconexo onde tentamos formular respostas para as nossas teorias da conspiração que nos permitam um sossego mental e uma justificação para a nossa existência. Pessoalmente gosto de pensar que existem inúmeros mundos, correspondentes a cada teoria pessoal que desenvolvemos com base no nosso entendimento pessoal.

Posteriormente expandimos aquilo que idealizámos acerca dos “nossos” mundos e trocamos ideias entre nós, deparando-nos com mentalidades diferentes e outras muito idênticas. Surgem então vertentes que nos ligam enquanto seres humanos, e que da mesma forma nos dividem, contudo, foi mais ou menos assim que fomos evoluindo e formámos a nossa sociedade.

A arte sempre foi uma aliada estupenda, que apesar de desvalorizada, inegavelmente trouxe ao mundo o melhor desta nossa raça, e nela encontro abismos de maravilhas por cada momento que me dedico a explorá-la. Dentro da pintura, em contexto do surrealismo, deparo-me com imagens avassaladoras que ilustram o entendimento de quem as produziu, e fico rendida a tais capacidades de transparecer um mundo que não existe fisicamente, até que a obra esteja terminada.

Este texto serve para explorar a forma como Salvador Dalí se dedicou à descrição do seu mundo e do seu entendimento, começando por compreender como a escolha do seu nome próprio o traumatizou de tal forma que somente teorizando os seus delírios lhe foi possível não cair num poço sem fundo de onde possivelmente não conseguiria retornar.

Um homem espanhol, nascido no início do século XX e um artista muito completo. Certo é que é conhecido pela sua revolução na vertente do surrealismo, mas não são de esquecer as suas colaborações com Alfred Hitchcock, Walt Disney ou com a revista Vogue. São inúmeros os assuntos relacionados com Dalí que podem ser discutidos e todos eles serão interessantes, tendo ele sido sempre extravagante e irreverente, de tal modo que foi expulso da Escola de Belas Artes de São Fernando, em Madrid, por afirmar que ninguém naquela instituição tinha capacidade suficiente para avaliar o seu trabalho, e quem somos nós para dizer o contrário?

Salvador Dalí “explica” um pouco da sua Arte

Uma curiosidade à cerca de Salvador Dalí é o facto do seu nome lhe ter sido dado em homenagem ao seu irmão, que faleceu muito cedo, ainda antes do nascimento do artista. Com isto, desde pequeno Dalí sentiu a projeção das espectativas dos seus pais para com o seu irmão mais velho, bem como o amor que estes lhe tinham, o que resultou num excesso de amor que delineou a sua personalidade e o levou a ser egocêntrico ao ponto de quase se perder em si mesmo.

Assim, por volta do ano 1930, Dalí criou o método paranoico-crítico que consiste, em termos básicos, na desconstrução de uma realidade evocando um estado de paranoia, o que permitiu ao mesmo ver a subjetividade como objeto principal na observação de uma imagem real e representá-la nas suas pinturas. Sendo este um processo complexo e, como o próprio Salvador explica, apenas possível àqueles que nascem com a capacidade de serem “habitados por associações e interpretações delirantes”, torna-se difícil interpretá-lo e, por isso, surgiram muitas teorias à cerca de Dalí que defendiam que o mesmo aliava-se a drogas psicadélicas para criar as suas pinturas, justificando também deste modo a sua extravagância e o seu comportamento fora do comum.

Aos olhos de si próprio, Dalí foi um monarca metafísico e apolítico que tinha a sua mulher, Gala, como sua inspiração e homenageava-a nos seus quadros religiosos onde a retratou como protagonista. Casou-se com Gala uma segunda vez para afirmar o seu amor por ela numa época em que os divórcios se faziam comuns. Era, portanto, um homem fiel ao seu intuito e ao seu sentimento, e que defendia a sua certeza.

É exemplo disso a sua afirmação de que nenhum dos seus professores da Escola de Belas Artes de São Fernando, como já mencionei acima, teria capacidade de avaliar os seus quadros, pois facto era que Dalí sabia mais sobre história da arte, e em específico sobre Rafael Sanzio e as suas obras, do que os próprios professores. Pelo facto de abordar este tema colocou a dignidade dos professores em causa e foi então expulso da instituição.

Salvador Dalí tinha, no mínimo, muito caráter.

“O Grande Masturbador” (1929)

“O Grande Masturbador” é provavelmente o quadro de Dalí que mais me impressiona. Cada detalhe desta obra oferece uma dualidade à cerca da sexualidade que culmina num impasse e numa não concretização do prazer físico, sem que este esteja aleado à culpa ou à vergonha.

Neste quadro Dalí retrata os seus maiores pavores que o acompanharam desde a infância, como dos gafanhotos, das formigas e o medo dos leões, o que na minha opinião representa o repúdio associado à masturbação e ao ato sexual em si, na procura pelo pudor e pela distinção do ser humano e do animal.

É importante notar que a visão desta tela surgiu em Dalí através da observação de uma litografia (que consiste na impressão de uma imagem através da compressão do papel contra uma superfície cravada e pintada) de uma mulher que cheirava um lírio. Com este contexto sou levada a acreditar que o sentimento retratado em “O Grande Masturbador” foi o mesmo que atravessou Salvador Dalí aquando deste deslumbramento, um desejo carnal para com o sexo feminino que é castrado pelo repúdio da masturbação, muito provavelmente proveniente da sua educação.

Pode ver-se que a cabeça do protagonista nesta tela não tem boca, mas antes os três elementos repudiados pelo compositor da obra, que fazem a ligação à figura da mulher, do lírio e do órgão genital masculino. Esta mudança de elementos fortalece o meu pensamento de que há um desejo que é impossível de ser satisfeito e que, por isso, impede a ereção e o clímax sexual.

“Destino” – colaboração entre Walt Disney e Salvador Dalí em meados dos anos 40

Esta curta metragem feita em colaboração entre Walt Disney e Salvador Dalí realça a sensibilidade deste último, que procuro expor neste artigo e que encontro cada vez mais nas suas obras. Nesta pequena e bela animação, nitidamente típica de Walt Disney, é retratada uma atração entre dois amantes, especificamente a história de Chronos, a personificação do tempo e a sua incapacidade de amar um mortal.

Há pouco para dizer relativamente ao que encontro nesta animação sem ser uma melancolia singela numa trágica história de amor. Quanto à participação de Dalí na mesma, é visível a sua envolvência e o seu traço metafisico e transcendente na abordagem de um tema que o mesmo conhecia tão bem e que experienciou, como poucos têm a oportunidade de o fazer, com a sua mulher, Gala.

“Girafa em Chamas” (1937)

“Girafa em Chamas” é uma obra intrigante criada por Dalí. Apesar do seu nome evidenciar um dos elementos da obra, a girafa não é a protagonista da mesma, é a mulher. As estruturas que apoiam as figuras femininas são alusivas à forma machista como são tratadas, bem como as gavetas que saem de uma delas representam o conteúdo delas por trás das camadas banais e carnais que as cobrem, que remetem para a objectificação das mesmas, reprimindo as suas verdadeiras identidades. A figura feminina mais distante segura na mão um pedaço de carne que simboliza o aclamar pelo regresso a um estágio primitivo da raça humana.

Da minha perspetiva, a girafa representa um sistema social que simplesmente não existe sem a mulher, daí a distância da mesma, tão “escondida” num quadro que tem o seu nome. O contexto histórico em que Salvador fez esta pintura também me leva a suportar esta teoria, uma vez que nesse ano, 1937, Espanha atravessava uma guerra civil violenta, o que levou o pintor a exprimir as suas preocupações e a refletir sobre a posição da humanidade no mundo. Sendo apolítico, como o próprio se intitulava, é lógico constatar a sua frustração e tristeza perante uma guerra civil no seu país.

A versatilidade de Dalí corre muitas vertentes, como inicialmente introduzi, no entanto era esta a intensidade que queria abordar, a emocional.

Contudo, e para terminar, deixo a sugestão da visualização do filme “Um Cão Andaluz“, realizado por Luis Buñuel, para o culminar de uma dose de Dalí na sua essência.

Júlia Stefanato

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