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Porque A Arte Somos Nós

“Aquele que sempre cuidou muito de si, acaba por se tornar enfermiço com o excesso de cuidado. Bendito seja o que endurece! Não gabo o país onde fluem manteiga e mel!”

O livro “Assim Falava Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche (Edições e Publicações Brasil Editora, 287 p.) é um livro fantástico! Simples assim. Escrito entre 1883 e 1885, sendo o meu exemplar datado de 1961, em edição esgotada, a obra é um esmero de metáforas, diálogos e aforismos, o estilo nonsense com a qual podemos dizer muitas coisas, mesmo não dizendo nada. Se encontrarem por aí alguém que leu este livro e diga que entendeu tudo, desconfie logo de caras: o sujeito não entendeu nada.

Aquele que pega e se propõe a ler “Assim Falava Zaratustra“, não adquire um livro. Ganha um amigo. Um destes com os quais você se senta para conversar nas cadeiras externas do Restaurante Martinho da Arcada sentindo a brisa advinda do Tejo, por horas a fio. Leiam do começo ao fim e acaso não tenham entendido nada, estarão no caminho certo. Deixe o exemplar à cabeceira e vez ou outra abra-o ao acaso, muito certamente lá estará um pensamento propício à sua investigação.

Vamos avançar ao cerne da obra? Zaratustra é um sábio que se afasta do convívio com a humanidade por uns longos 10 anos. O nome faz referência ao Deus persa Zoroastro e a um arquétipo de santo medieval. Nesse período, dialogando apenas com o Sol, o Astro Rei, percebe a sua grandeza e entende que é chegada a hora de descer para o contato com os que ficaram, na planície, os não iluminados. No retiro, Zaratustra refletiu bastante sobre as coisas da vida e entende que era chegada a hora de compartilhar os seus conhecimentos.

Friedrich Nietzsche

Tem em mente uma nobre tarefa: não intenta ser o líder religioso de ninguém, mas incentivará todos a pensarem com as suas próprias cabeças. Zaratustra quer promover líderes, não deseja seguidores. Antes mesmo do seu intento, é desaconselhado por um velho advertindo-lhe que abandonasse a empreitada, uma vez que analisa que a degenerância dos seus iguais poria tudo a perder e que a massa de ignaros não estaria à altura dos seus ensinamentos.

E quais foram essas análises que Zaratustra fez na sua montanha? São várias, cada uma mais provocadora que outra, mas ousada e que apregoa a transvaloração de todos os valores. Ele concebe a ideia do Super Homem (não é o Clark Kent, que fique bem claro), que nada mais é que o homem que tem que instaurar novos valores. Esse Super Homem viu com sabedoria a morte de deus, do deus cristão que foi posto num asilo pelo crescente cientificismo da época.

Estamos em plena época de Charles Darwin (1809-1882), e aqui vai um esclarecimento importante: o senso comum entende que quando Nietzsche proclamou “Deus está morto”, que foi ele quem assim o desejou. Ledo engano: ele pressentiu que o deus dos cristãos havia sido morto pela própria humanidade. E quais seriam esses valores propostos pelo Super Homem? Aqui Nietzsche faz um carrossel de conceitos, ideias e possibilidades. Alude às idades espirituais do homem, e estabelece três estágios: a idade do camelo, a idade do leão e a idade da criança. Vamos avançar um pouquinho?

Na idade do camelo, o homem submete-se ao “Tu deves”. Trata-se do homem medíocre, abnegado, que aguenta tudo calado e resignado. Acostumado a suportar todo o peso morto das tradições e obrigações, é o dito cidadão exemplar no seio de uma sociedade. Imaginem um conhecido seu com essas características nos dias atuais. Conseguiu formar uma imagem? Até que chega a um ponto em que este espírito se revolta e deixa essa carga de lado.

Charles Darwin

Chuta o pau da barraca e intenta ser uma nova pessoa: eis a idade do leão, e a dizer que nem costado o bicho tem. E vá tentar ser dócil com o felino! Ele te estraçalha com uma dentada. Mas esclarece Nietzsche que apenas o leão não bastaria para o renascer deste novo homem: o terceiro estágio seria o da criança, que inauguraria novos valores em detrimento àquele modo antigo e putrefato de se lidar com a vida, como um mero camelo.

Intrínseco a isso, a dicotomia feita por ele entre a mentalidade de Senhor e a mentalidade de escravo. Escravo são aqueles que tão somente obedecem, que não se fazem ouvir, sendo os Senhores o estágio pretendido por Zaratustra mesmo sabendo de antemão que quem nasceu para rebanho nunca chegará a ser pastor.

O pensamento de Nietzsche já tenderia a refletir atualmente no seguinte: sim, temos sete biliões de indivíduos no planeta, mas somente sete se destacam dentre o rebanho todo. Nessa transvaloração dos valores, entende a inversão feita pelos fracos de espírito acerca da dicotomia do bom e do mau. Os epilépticos do conceito, vide os cristãos, são aqueles que entendem que ser bom é sofrer, amargurar, que são ressentidos e fracos de espírito. Estes julgam os superiores como maus, exatamente por não aceitarem esse rosário de amarguras e abnegações. Segundo Nietzsche, o bom para ele era a casta dos superiores, que vivem a vida nesta vida, e não aqueles que aguardam um fictício além. A paulada é muito bem dada!

‘Para os puros tudo é puro’. – Assim falava o povo. – Mas eu vos digo: para os porcos tudo é porco!

Por isso os fanáticos e os que curvam a cerviz, que também têm o coração inclinado, predicam desta forma:

‘O próprio mundo é um monstro lamacento!’

Porque todos esses têm o espírito sujo, especialmente os que se não dão paz nem sossego enquanto não vêm o mundo por detrás: são os crentes no mundo posterior!

A esses lhes digo eu na cara, conquanto não soe muito bem: o mundo parece-se com o homem por ele ter também traseiro: isto é muito verdade!

Há no mundo muita lama: isto é muita verdade! Mas nem por isso o mundo é um monstro lamacento!

É sensato haver no mundo muitas coisas que cheirem mal: o próprio asco cria asas e forças que pressentem mananciais!

Até nos melhores há qualquer coisa repugnante, até o melhor é coisa que se deve superar!

Ó! Meus irmãos! É sensato haver muita lama no mundo!

Dá para perceber que Zaratustra não terá vida fácil na planície. Crítico aos “desprezadores do corpo”, sendo estes os crentes que esperam um Além, uma ideia metafísica perdida e sem efetividade, no convívio com os da planície por vezes o sábio se impacienta. Vamos escrever em português claro? Ele se impacienta com tanta burrice. Qualquer semelhança com a época atual não terá sido mera coincidência.

Zaratustra conversa com animais, com um anão, com o homem mais feio do mundo, com o papa e até com a sua sombra, sendo que estes o seguem. Mas o interessante é o diálogo em que ele vai ter com a mulher, e é advertido: “Não se esqueça de levar o chicote” (feministas de plantão, podem ficar indignadas). O surreal é que essas entidades são o próprio espelho do sábio e santo, e é sempre um olhar para dentro, numa reflexão aguda e precisa.

Vou me permitir um aparte interessante: há 20 anos, quando estava dando os primeiros passos na Filosofia, e durante uma palestra, um médico me perguntou se o filósofo era aquele que se sentia excluído da sociedade, se era aquele que olhava tudo de cima e com viés crítico. À época, respondendo por mim, claro, disse que não, que o papel do filósofo era estar inserido na sociedade, procurar auxiliar, etc.

Com o passar dos tempos, observei-me afastando de muitas discussões tolas e sem sentido e se pudesse responder ao aluno médico atualmente, dir-lhe-ia que estou empreendendo o percurso de Zaratustra, ou seja, subindo a montanha para refletir. Só espero ficar bem mais que 10 anos, quem sabe 50? 70? 100?

Tendo “Assim Falava Zaratustra” como um fiel amigo, quase sempre abro ao acaso uma passagem e leio um trecho. Confesso que na elaboração do meu romance “A Queda” (que está sendo publicado parcialmente aqui em forma de contos), inseri muitas passagens deste Zaratustra à guisa de homenagem. Mesmo o romance tendo um arcabouço lógico, fiz questão de deixar ao acaso o trecho que seria citado naquela determinada passagem.

“A Queda”, escrito por Marcelo Pereira Rodrigues

Um dos segredos deste “Assim Falava Zaratustra” é não tentar entendê-lo racionalmente apenas, é necessário senti-lo, e pode ser que este amigo possa querer te ditar verdades amargas e devemos assim cuidar bem dele. Livro que encerra muitas das discussões de Nietzsche no campo da moral, dos costumes, da sua crítica ferrenha à religião, ao rebanho e à mediocridade, a obra de aforismos encanta pela sua beleza e frases de efeito. Um livro fantástico em toda a sua complexidade!

Ai! Sempre são muito poucos os que têm um coração de largo fôlego e larga impetuosidade; e são também os únicos de espírito perseverante. Tudo o mais é covardia. E o mais é sempre a grande massa, o ordinário, o supérfluo, os que estão de mais. Todos estes são covardes!

Fica a dica para ouvirem a música tema de abertura do filme “2001: Uma Odisseia no Espaço” (do qual já tratei aqui). Intitulada Assim Falava Zaratustra.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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