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Porque A Arte Somos Nós

É com satisfação que tratarei aqui de mais um clássico do escritor russo Fiódor Dostoievski (1821-1881). Após “Os Irmãos Karamazov“, é chegada a hora de analisar “O Idiota” (José Olympio Editora, 440 p. e Companhia Aguilar Editora, 262 p.). O exemplar que tenho é clássico, permeado com algumas ilustrações e é do ano de 1955. Um livro bem velhinho, uma vez que o adquiri num sebo, mas guardo-o com o maior zelo.

Irei contar um caso que me fez sentir o próprio idiota e é uma história engraçada. Li este livro em 2010 e propus ao editor d‘OBarrete uma resenha. Ao que ele aceitou, procurei fazer o fichamento, mas ao analisar friamente a obra, percebi que ela acabava de forma abrupta. Pesquisei alguns livros e cheguei à conclusão de que só havia lido as duas primeiras partes em 2010. Havia ainda a 3.ª e 4.ª. Pensei: por isso que não entendi direito a obra. Consegui a sequência e empreendi a releitura desde o começo, para não me parecer tão idiota assim.

Este “O Idiota” foi lançado em 1869 e conta-nos uma história surpreendente. O personagem principal é um rapaz de 26 anos que estava na Suíça, em Lucerna, para se tratar de uma doença chamada idiotia. Certamente um certo retardo mental sendo que sofria também de epilepsia. Encontra-se num comboio, retornando a São Petersburgo, e durante a viagem os seus interlocutores já percebem que estão diante de um sujeito simplório. Após mais de quatro anos, ele vem para se encontrar com uma parente distante, havia inclusive enviado uma carta que não fora respondida. O rapaz é humilde, as suas vestimentas rústicas e carrega como bagagem apenas um embrulho. Seu nome? Liov Nikolaievitch Mishkin, autodenominado Príncipe Mishkin.

Vem tentar uma audiência na residência do general Epanchin, para ter com a sua esposa, a generala Lizaveta. O casal tem três filhas, Alexandra, Adelaida e Aglaia, com os seus 25, 23 e 20 anos respetivamente. Quando consegue ser recebido pelo general Ivan Fiodorovitch Epanchin, este já percebe que o visitante é um tanto confuso. Num primeiro momento, não veio pedir nada e só se queria dar a conhecer. O general, vencida as primeiras suspeitas, dispõe-se a ajudar o Príncipe e empresta-lhe um dinheiro (25 rublos) para dar os primeiros passos na cidade, além de lhe prometer um serviço como escrevente, dada a sua caligrafia.

Fiódor Dostoievski

Apresenta-o à esposa e às filhas e convida-o para almoçar, sendo que ele mesmo não estaria presente, por um compromisso inadiável. As apresentações iniciais, os diálogos são de um disparate só. Logo as quatro mulheres verificam que estão diante de um idiota, sendo que o próprio visitante não desfaz essa impressão, antes aceitando-a. Começa aludindo que passara a gostar de Lucerna quando se encantou por um jumentinho, passa a um assunto altamente filosófico de cabeças sendo guilhotinadas numa execução pública e essa conversa sem nexo vai proporcionando boas gargalhadas às anfitriãs, sendo que ele também ri. Conta de como se dava bem com as crianças da vila, a ponto de os adultos acusarem-no de tentar corrompê-las.

Não nos esqueçamos que o nosso protagonista tem a idade mental de um miúdo de 10 anos! Fala sobre a sofrida Marie, que vivia na miséria e que morreu jovem ainda, vítima de tuberculose. Muda abruptamente de assunto e discorre sobre as fisionomias das anfitriãs, menos Aglaia. Dá com a língua nos dentes acerca de um retrato que vira no gabinete do general. Nesse primeiro momento, uma trama se interpõe e aponta para Nastasia Filippovna, que é uma jovem cortesã pretendida por muitos, mas que vinha atazanando a vida do seu protetor, Afanasio Ivanovitch. O retrato é dela.

Para despeito da generala, que manda vir o secretário, pretenso noivo da beldade, embora ela desconfie que o seu marido ande a engraçar a cortesã. Gania, o secretário, faz do Príncipe garoto de recados para entregar um bilhete a Aglaia, que o desdenha. Puto da vida, sai resmungando com o Idiota e é nessa passagem que Mishkin se impõe pela primeira vez e esclarece que não iria aguentar desaforos, e, se fosse o caso, não mais se hospedaria na casa de sua mãe. O secretário desculpa-se e seguem juntos para conhecerem a hospedaria.

Chegando lá, Mishkin é apresentado à família de Gania: sua mãe, sua irmã, um irmãozinho (Kólia) e um pai pra lá de bonachão e que parece não levar a vida a sério. É dado que o secretário morre de vergonha da família, ainda para mais que eles têm que se sujeitar a alugar quartos. E isso não pegava bem para a alta sociedade à qual ele desejava entrar. Um clima de tensão vai se formando entre ele e a irmã, Varia. O pai, Ardalion Alexandrovitch, é um bufão. Para piorar as coisas, Nastasia chega de rompante, confundindo o Príncipe com um lacaio e escandaliza a família com o seu jeito coquete.

Ilustração de Oswaldo Goeldi

O pai baba por ela e conta histórias inverosímeis. Gania já não sabe onde enfiar a cara quando uma turba de desordeiros adentra a pensão, capitaneada por Rogozhin, bêbado e apaixonado por Nastasia e que pretende “comprá-la”. Uma confusão dos diabos e o inocente do Príncipe no meio deste rolo todo. Rogozhin sai ameaçando Gania e este ainda recebe uma cusparada da irmã, tenta esbofeteá-la e é contido por Minhski que recebe o tabefe e quase chega a oferecer a outra face, tal Jesus de Nazaré. Aqui já sabemos: Gania é um arrivista que deseja fazer um bom casamento, e se engraça tanto para o lado de Aglaia quanto Nastasia, que é impossível de espírito.

Nastasia convida para uma festa em sua casa e dará a resposta a Gania se aceitará o seu pedido de casamento, e o interessante é que na receção se encontrarão vários pretendentes: o estouvado Rogozhin aparece com a sua turba, o general casado com a tia do Príncipe está ali para ver o que acontece e, um pouco bêbada e de forma insensata, a beldade coloca os seus planos nas mãos do Idiota, e este num rompante se declara para ela. O final do aniversário de Nastasia é uma barafunda só: que confusão, sendo que ela mesma se julga uma rameira e só ali parece que todos os homens estavam a fim de dar um “pega” nela.

Mas surge a pergunta que não quer calar: qual é a deste Príncipe que chega de inopino e quais são as suas reais intenções? Agora ficamos a saber que ele é possuidor de um testamento e que veio reivindicar uma pequena fortuna. Meio ingénuo, mostra a carta que lhe garante essa herança. Agora ele será visto com outros olhos. No fim da primeira parte, o Príncipe irá a Moscovo e ausentar-se-á de São Petersburgo por seis meses. Lá ele fica com Nastasia, que o abandona para ficar com Rogozhin, sendo que o abandona também para retornar a São Petersburgo.

Ao receber a sua herança, Minhskin foi advertido de que muitos larápios se aproveitaram dele, pois pagou dívidas já liquidadas da dona da herança, mas eis que ele vem a São Petersburgo imbuído do desejo de conversar com Rogozhin. A alma perturbada deste ora lhe indica amizade, ora inimizade. A verdade é que ele era louco de paixão por Nastasia, ao passo que Minhskin nutria compaixão por ela.

É nesta passagem que Dostoievski exerce o alter ego descrevendo os instantes que antecedem um ataque de epilepsia, e o narrador viaja nas vicissitudes e naquele “um segundo” em que o corpo se ausenta e tudo explode num violentíssimo jogo de cores, tal um canhão de luzes no show dos Coldplay (brincadeirinha, só para arrefecer um pouco a aridez deste escrito), com o corpo em espasmos e com o sujeito babando-se. Momentos antes de Rogozhin atentar contra a sua vida, o Príncipe é acometido e cai escadas abaixo do hotel onde estava hospedado, para desespero do opositor que foge.

Ilustração de Oswaldo Goeldi – a utilizada na edição da capa

O cenário da 3.ª parte é a vila de Pávlovsk, onde o senhor Liédiediev tem uma casa na qual aluga alguns quartos adjacentes. Amigo do pai de Gania, com a qual trava discussões filosóficas, trata-se de um finório e entre os seus hóspedes, está ninguém mais ninguém menos que o nosso protagonista Príncipe. Convalescente, é visitado pelos conhecidos que agora o tratam bem (não nos esqueçamos que ele enriqueceu há pouco) e numa receção o seu cómodo é invadido por uma turba que reclama a verdade, afirmando que Minhskin deveria repartir a sua herança com um suposto parente.

A turba é composta por um boxeador (Keller) que faz publicar numa gazeta um perfil nada lisonjeiro do nosso herói, um tísico entre a vida e a morte, Hipólit, e Burdóvski, o suposto herdeiro, que se percebe, logo de caras é usado neste golpe e que não se atenta para o facto de estar a desonrar a memória da sua mãe. Hipólit (que figura!) faz um ‘dramalhão’ e na presença de todos, exige ler uma autobiografia admitindo a vontade de antecipar a morte por tuberculose e cometer suicídio. A carta é muito bem escrita, lida para a perplexidade de todos e um final surpreendente se apresenta.

Recuperando-se do ocorrido, Minhskin intenta casamento e engraça-se para o lado de Aglaia, embora ame de compaixão Nastasia. O noivado é atribulado, vê-se que a bela filha do general faz gato sapato do seu pretendente, e quando muito admite conversar com aquele bobo. Mas ao elencar a tresloucada Nastasia como sua antagonista, sendo que esta lhe chega a enviar cartas, mais por capricho que por amor, irá aceitar a corte do nosso protagonista. O problema é que Rogozhin ama Nastasia e está sempre à espreita. Como loucura pouca é bobagem, do mesmo modo que Rogozhin é um dragão para a maioria, não passa de uma lagartixa para a amada.

Pois bem, penso que já contei muito do enredo, mas propositalmente deixarei no vácuo a quarta parte e final para não estragar o deleite que é ler “O Idiota”. Dostoievski é denso na composição dos seus personagens, investiga a fundo a alma de todos eles e escapa do simplismo herói e vilão, permeando todos eles com marcas humanas profundas que nos assombram pela autenticidade. Não à toa tinha ele Sigmund Freud como um de seus mais ardorosos leitores e contribuiu de facto para os arquétipos comportamentais de todos nós. Quando a voz omnisciente do narrador disseca alguns personagens, chegamos a ficar com vergonha alheia, quando, por exemplo, nos revela o caráter de Gavrila Ardaliónovitch, o nosso Gania. Cito:

Gavrila Ardaliónovitch, que é um dos heróis do nosso romance, pertencia à segunda categoria; a dos medíocres ‘mais inteligentes’, ainda que, da cabeça aos pés, ardessem nele ânsias de ser original. Observamos mais acima que esta segunda categoria é muito mais infeliz que a primeira. Isto se deve a que um homem ‘vulgar’ mais inteligente, mesmo se se acredita na ocasião (e mesmo durante toda a sua vida) dotado de génio e de originalidade, nem por isso deixa de guardar no seu coração o verme da dúvida que o rói a ponto de acabar por vezes num completo desespero. Se se resigna, permanece não obstante definitivamente intoxicado pelo sentimento da vaidade reprimida.

Aliás, tomamos um caso extremo: a maior parte do tempo, a sorte dessa categoria inteligente de homens medíocres está longe de ser tão trágica, quando muito acontece-lhes vir a sofrer pouco ou muito do fígado ao fim de um certo número de anos. A isto se reduz a infelicidade deles. Todavia, antes de se acalmar e resignar-se, praticam tais pessoas por vezes tolices durante muito tempo, desde a sua juventude à sua maturidade, e sem outro móvel que não seja o desejo de exibir originalidade.

E vocês, estimados leitores, conhecem pessoas assim? Conseguem dissecar tão bem personalidades tão transparentes? Se a máscara das relações interpessoais nos impedem muitas vezes de irmos fundo nas análises, quando observamos sovinices, maledicências, invejas, autopromoções, mediocridades, certamente é justo certas análises superficiais para mantermos um pouco o verniz da socialização, não é mesmo? Findo por aqui convidando-os a iniciarem desde já a leitura de um livro deste autor russo que é simplesmente maravilhoso! “O Idiota” é um livro que, ao cabo da sua leitura, nos deixa uma cicatriz na alma! E isso não é pouca coisa… Misto de Jesus e Dom Quixote, o Príncipe é este cavaleiro errante que nos surpreende pelos inestimáveis atos de bondade.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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