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Para o bem e para o mal, é um desafio ingrato tentar citar um cineasta tão formalmente e tematicamente consistente como o japonês Yasujirô Ozu. Em 35 anos de longas e curtas-metragens, a sua matriz visual manteve-se quase intacta: movimentos de câmara raros, ritmo pautado por cortes cirúrgicos, geometria atenta e câmara baixa, ao nível do ajoelhar num tatami – tão recorrente na tradição japonesa. Quanto à composição da matéria-prima em que incorre, partilha também de características homogéneas, principalmente na segunda metade da filmografia. A família clássica japonesa e as suas inquietações mais mundanas são o ponto de partida para analisar com sinceridade a condição humana. Evocando epifanias singelas no mais agitado dos seres.

Adaptado do romance homónimo do escritor Ton Satomi, “Late Autumn”, em português “O Fim do Outono“, foi escrito por Ozu e pelo seu colaborador de longa data, Kôgo Noda. Os meandros da história começam no sétimo memorial anual do falecido Shuzo Miwa, que ocasiona a reunião de amigos e família. Shuzo Taguchi (Nobuo Nakamura) e Soichi Mamiya (Shin Saburi) são casados e compõe dois terços dos companheiros de Miwa. Em conversa, admitem sentir grande atração pela viúva, Akiko Miwa (Setsuko Hara). Já o último terço diz respeito a Seiichiro Hirayama (Ryûji Kita), um homem também viúvo mas sem aparente interesse pela luminosa Akiko.

Convencidos de que a esbelta Ayako Miwa (Yôko Tsukasa), filha de Akiko, deseja e merece um homem que se preze, os três amigos tentam arranjar-lhe casamento. Desconsiderando o facto de que Ayako não tem qualquer interesse em contrair matrimónio no presente. Um retrato emblemático do (des)valor da vontade feminina no Japão do pós-guerra. Acontece que, à cabeça da sua lista de prioridades está o acompanhamento e o cuidado da sua mãe, que não voltara a casar e que Ayako não quer deixar sozinha.

“Late Autumn” (1960)

Este dilema pessoal, ainda que com gritantes ecos sociais, é o cerne do discurso narrativo do filme. O relato do fosso sem fundo entre a vontade do indivíduo e a pressão formal de encaixar no puzzle comunitário. Assim como a cisão geracional que volta e meia emerge no cinema do autor.

Refutar a pertinência das questões é insensato, no entanto, a conversa em “Late Autumn” apresenta demasiadas semelhanças com a que se ouve na obra-prima “Late Spring” (“Primavera Tardia“), sem a tensão ou fulgor emocional que a caracterizam. Sendo certo que a ressonância é deliberativa (a atriz que interpreta a mãe encarna por sua vez a filha hesitante, em “Primavera Tardia”), a reimaginação está longe de tangibilizar a complexidade do drama que explora.

Ainda assim, estas limitações não previnem que o filme se torne obsoleto ou desqualificado. Sendo facto que ser eclético não é o propósito do cineasta, as atuações dos habituais colaboradores de Ozu à frente da câmara são uniformemente agradáveis e até reconfortantes. A reforçar a sua arte, as repetidas pillow shots (imagens que expõe espaços domésticos vazios ou paisagens externas despovoadas) entre cenas mantêm-se fulcrais para meditar os significados do seu cinema.

Em “Late Autumn”, o cenário vazio da habitação de Akiko simboliza a sua solidão futura e por extensão um inquietante desconsolo (que se materializa minutos depois com um ligeiro sorriso agridoce). Este motivo é repetido noutros instantes, como se estivéssemos frente-a-frente com o desfecho natural que todos enfrentamos.

(pillow shot de que falo)

Embora menos pronunciado do que em “Good Morning” (“Bom Dia“) (1959), o humor periférico não deixa de ser uma componente chave para acomodar as extensas duas horas e oito minutos de filme. A fonte principal do mesmo parte da dinâmica entre os três homens de meia-idade, que apesar de pensarem que são donos e senhores da razão, na hora da verdade têm comportamentos patéticos. Neste aspeto, rimo-nos de e com eles. Perante as mentiras, desentendimentos e semi-reviravoltas que vão tropeçando no grande ecrã. Uma amálgama que é captada no rácio 1.33:1, ao bom estilo contemplativo do autor.

Os três homens

Não é, em suma, um dos seus grandes filmes. Por fundamental que tenha sido para captar as audiências ocidentais. Enceta a última década de trabalho do cineasta, que realizou apenas mais dois filmes: “Autumn for the Kohayagawa Family” (1961) e “An Autumn Afternoon” (“O Gosto do Saké“) (1962). Onde continuou a dissecar o deserto existencial que todos sentimos quando não estamos distraídos. Yasujirô Ozu pode ter falecido em 1963, mas o caráter universal das suas histórias continua a assegurar que enquanto o Homem for mortal, não será esquecido.

“Late Autumn” foi exibido no passado dia 27 de abril (terça-feira) no Auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro, Braga, uma organização do Lucky Star – Cineclube de Braga. As novidades e a programação deste mês aqui.

Bernardo Freire

Rating: 3 out of 4.

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