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Porque A Arte Somos Nós

O romance “Casei com um Comunista” (Companhia de Bolso, 1998, 373 p.), de Philip Roth, é um livro soberbo. Advirto de antemão que é bom conhecer um pouco a história dos Estados Unidos após o fim da II Grande Guerra, pelo menos ter uma noção do que foi o macarthismo na sua obsessão pela caça aos comunistas e se delimitarmos isso à época de 1950, tanto melhor. Munidos dessas informações básicas, é dado a hora de ler essa história para lá de envolvente.

Tudo se desenrola num intervalo de seis dias, quando o nonagenário professor Murray Ringold reencontra o seu ex-aluno do Ensino Médio Nathan Zuckerman e passam a rememorar a época da escola e todo o contexto daquele período. Ira, o irmão do professor, é o personagem principal, pois toda a trama recai sobre a história deste rapaz desajustado e órfão que se deixa envolver nas ideias socialistas e à medida em que vai galgando os degraus do sucesso, tendo um programa de rádio (equivalente a ser um âncora de TV nos dias atuais).

O senador Joseph McCarthy, o impulsionar do macarthismo

Casa-se com uma estrela das radionovelas Eve, que já fora casada três vezes e que tinha uma relação submissa com a filha Sylphid, que aos 23 anos era uma harpista obesa e de mau-caráter. O interessante neste livro é que o professor Murray assemelha-se um pouco com Sherazade, a contadora de histórias que entretinha o sultão de modo a adiar a sua morte. Perdemo-nos muitas vezes da cena do reencontro entre professor e aluno e na maioria do tempo parece que estamos lá, nos idos anos 50.

Ira é impulsivo, um indivíduo forte e por vezes incontrolável. Casado com uma estrela do mundo cultural, não deixa o seu espírito se subjugar pelo conforto da nova vida. Assim sendo, corresponde-se com líderes comunistas e tem claro em si o desejo de fortalecer os sindicatos e ajudar a emplacar candidatos de esquerda na política, mesmo sendo uma voz apenas. Ele torna-se amigo e meio preceptor de Nathan, que assim é apresentado a um mundo de injustiças e desejos revolucionários.

Quem de nós, quando jovens, não tentamos mudar o mundo? Roth apresenta-nos sugestões de leitura, a partir dos seus personagens, e a linguagem nua e crua de Thomas Paine é exaltada. Adendo: interessante isso, pois quando vi a menção a Paine, e um pouco das ideias propostas por ele, pensei: “Acho que tenho um livro dele, mas tenho a certeza que não li ainda”. Estava certo, e entusiasmei-me para ler e estudar o seu conceito de senso comum. Mas voltando: aos poucos, Nathan vai conhecendo Eve e Sylphid, aliás, é numa festa que ele é apresentado a esse mundo de glamour, com colunistas de jornais e revistas, formadores de opinião, músicos e artistas.

O mundo das celebridades costuma esconder muitas coisas. A verdade é que com o surgimento da televisão Eve vai se tornando uma estrela decadente, ainda para mais está um pouco passada e gorda. Ira não se dá com a sua filha e engraça com a amiga desta, Pamela, uma musicista que migrara do Reino Unido em busca de mais liberdade nos Estados Unidos. A impulsividade de Ira apresenta-se também na relação que tem com a massagista eslovena que estende a prestação dos seus serviços, oferecendo-lhe sexo oral.

Todo esse bem viver não ofusca a insatisfação vulcânica de Ira, que não admite um mundo sem a luta de classes. Embora o seu irmão Murray também presida um sindicato de professores, sendo mais lógico e precavido, ele é o oposto, sempre pregando para os convertidos e outros nem tanto a necessidade de uma revolução.

“Casei com um Comunista” é o livro publicado após o fim do casamento de Eve e Ira. Como vingança, ela concede entrevistas para uma celebridade de fofocas e esta publica a obra, uma febre abrupta logo a seguir a ser lançado e que acaba com a carreira de Ira. Incrível perceber a atualidade destes livros bombásticos e geralmente escritos por parentes próximos, desancando uma estrela e autoridade. Donald Trump que o diga! Como extensão, os amigos e parentes do “comunista” sofrem retaliações e Ira agora só deseja vingar-se de Eve, que arrependida diz ter sido manipulada a permitir o livro.

O escritor Philip Roth

Uma das melhores passagens do livro (sublinhei tudo) foi quando Nathan, sempre à procura de um mestre orientador, se depara com o cético professor Leo Glucksman, que simplesmente odeia a literatura e arte panfletária. Faço questão de citar o trecho inteiro:

— A política é o grande generalizador — disse-me Leo — e a literatura é o grande particularizador, e as duas não estão simplesmente numa relação inversa. Estão numa relação antagónica. Para a política, a literatura é decadente, débil, irrelevante, chata, equivocada, obtusa, uma coisa que não tem sentido e que na verdade não devia existir. Porquê? Porque o impulso particularizador é literatura. Como você pode ser um artista e renunciar à nuance? Mas também como é que você pode ser um político e permitir a nuance?

Como artista, a nuance é a sua missão. Sua missão é não simplificar. Mesmo que você resolva escrever da maneira mais simples, à la Hemingway, a missão continua sendo a de garantir a nuance, elucidar a complicação, sugerir a contradição. E não apagar a contradição, não negar a contradição, mas sim ver onde, no interior da contradição, se encontra o ser humano atormentado. Levar em conta o caos, garantir que ele se manifeste. Você precisa garantir que ele se manifeste. De outro modo você só faz propaganda, se não de um partido político, de um movimento político, então propaganda cretina da vida em si mesma, da vida como ela gostaria de ser divulgada.

Durante os primeiros cinco, seis anos da revolução russa, os revolucionários gritavam ‘amor livre, o amor será livre!’. Mas, quando se viram no poder, não puderam permitir nada disso. Por o que é o amor livre? O caos. E eles não queriam o caos. Não foi por isso que fizeram a sua revolução gloriosa. Queriam algo cuidadosamente disciplinado, organizado, contido, cientificamente previsível, se possível. O amor livre perturba a organização, perturba a máquina social, política e cultural deles. A arte também perturba a organização. A literatura perturba a organização. Não por ser espalhafatosamente a favor ou contra. Ela perturba a organização porque não é generalizada.

A natureza intrínseca da particularidade é não se conformar. Generalizar o sofrimento: isto é a literatura. Nesta polaridade reside o antagonismo. Manter o particular vivo num mundo simplificado e generalizante — é nesse terreno que se trava a batalha. Você não precisa escrever para legitimar o capitalismo. Você está fora de ambos. Se você é escritor, você é tão alheio a um quanto a outro. Sim, você vê diferenças e, é claro, você vê que esta merda é um pouco melhor que a outra merda, ou que a outra merda é um pouco melhor do que esta merda. Talvez até muito melhor.

Mas você vê que é tudo uma merda. Você não é um funcionário do governo. Não é um militante. Não é um crente. Você é alguém que trata o mundo e o que acontece no mundo de uma maneira muito diferente. O militante apresenta uma fé, uma grande crença que vai mudar o mundo, e o artista apresenta um produto que não tem lugar nesse mundo. É inútil. O artista, o escritor sério, traz ao mundo algo que desde o início nem mesmo estava lá. Quando Deus criou todo esse troço em sete dias, os pássaros, os rios, os seres humanos, não teve nem dez minutos para a literatura.

‘E então se faça a literatura. Alguns gostarão, outros ficarão obcecados por ela, desejarão fazê-la…’ Não. Não. Ele não disse nada disso. Se você tivesse perguntado a Deus: ‘E vão existir bombeiros hidráulicos?’. ‘Sim, existirão. Porque eles terão casas e precisarão de bombeiros’. ‘E vão existir médicos?’ ‘Sim. Porque eles ficarão doentes e vão precisar de médicos para lhes dar pílulas’. ‘E literatura?’ ‘Literatura? Do que você está falando? Para que isso serve? Onde é que ela se encaixa? Por favor, estou criando um universo, não uma universidade. Nada de literatura.’

Ufa! Lendo isso tive a prova inconteste de que sou escritor. Philip Roth ainda encontra tempo para inserir Sören Kierkegaard, o filósofo dinamarquês que não suportava as multidões, faz um alter ego ao descrever o desejo íntimo do ser humano em findar os seus dias numa cabana isolado de todos e acaba com uma linda metáfora sobre perecimentos e estrelas, lembrando-nos um pouco dos nossos pais que nos diziam que as pessoas não morriam, transformavam-se em estrelinhas. Enfim, deixei pistas para não perderem tempo e começarem a ler este livro intenso e belo.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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