OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

O encontro que se faz com o grande ecrã é de uma saudade e nostalgia pura, imediata, mítica e até, dentro da espontaneidade, uma experiência absurda. Porque o contacto que se estabelece é de tal forma pessoal que o que vemos na tela não passa de uma forma como a nossa realidade se revê na ficção. A partir daí, as sensações possíveis são quase uma pré-catarse, na qual o filme nos convida a ir caminhando e entrando no universo intelectual e emocional que ele propõe.

Tudo isto é necessário para nos pôr a pensar sobre aquilo que somos, mas acima de tudo relativamente ao que gostaríamos de ser. Em período de pandemia, esse equilíbrio necessário entre a azáfama do dia-a-dia e da descentralização do que está à nossa volta ganha um novo sentido e uma nova necessidade.

A saudade é um tema que pode vir antes, durante e depois de ver um filme. A saudade por vezes é o que nos leva a revisitar certas obras, a descobri-las melhor, a magicar significados encobertos, intencionalmente escondidos para elevar. Durante há toda uma musicalidade que a história pede, de imersão na narrativa, que passamos a sentir o que as personagens sentem, passando a ser, mesmo que ficcionalmente, mais do que aquilo que elas são, aquilo que elas representam.

Saudade após a visualização da película, numa perspetiva mais acertada enquanto nostalgia, é quando a obra é tão forte e diferente que fica difícil permanecer indiferente ao que foi experienciado. Isto tudo é um puzzle em que a nossa mente entra, imergindo numa dinâmica que toma conta de nós e nos guia. Há quem diga que estes processos podem ser simultâneos e até que as suas experiências estão, de certa forma, formalmente ligadas.

“La montaña sagrada”, Alejandro Jodorowsky (1973)

Mas a verdadeira magia por detrás disto vem com a simplicidade que transporta, no sentido em que somos levados a aceitar: 1.º a nossa própria individualidade e o vazio que ela significa e 2.º a nossa humildade, a humanidade que nos permite abrir os olhos para um novo mundo, fugir de nós próprios e sentir compaixão por aquilo que, outrora, fomos.

Aqui a memória tem, portanto, um papel significativo e, claro, é o mecanismo necessário e suficiente para revisitar e moldar sentimentos e emoções. Por isso, podemos dizer até que o cinema tem na saudade o auge da sua essência, porque se pudéssemos dividir a experiência em três atos, a palavra tão bela e portuguesa como é “saudade” teria na sua índole o mote da sétima arte como manifestação à parte, como motivo para nos orgulharmos de sentirmos vazios infinitos em nós e em ser isso que nos transporta para grandes e genuínos feitos.

Amar o cinema é amarmo-nos, recordando o tema de outras reflexões, e recordando a necessidade que temos de encontrar significado noutras passagens, em tempos em que até podíamos não ter bem noção de nós próprios nem do brilhantismo que uma “mera” história pode ter. A estrutura de uma história cria significado e por vezes a necessidade de a ouvir vezes sem conta está, não no que ela representa, mas no que ela faz sentir (conforto).

O verdadeiro conforto da saudade está em mantermo-nos ligados e abertos a um novo mundo de significação e de aventura. Para lá chegar, é preciso ser humilde e olhar para o passado com os olhos de quem se orgulha ter vivido um filme.

Porque a saudade não ocupa lugar… a menos que não a ficcionemos.

Vale a pena pensar nisto.

“É necessário sair da ilha para ver a ilha, não nos vemos se não saímos de nós”


José Saramago

Tiago Ferreira

Imagem da capa alusiva ao filme “Call Me By Your Name” (2017)

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