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Porque A Arte Somos Nós

Baruch de Spinoza (1632-1677) foi a discrição em pessoa. De saúde frágil, falecido aos 44 anos, no pouco tempo em que esteve na Terra fez a diferença. E quanta diferença! Intelectual da mais alta estirpe, pensador nato, pertencia à comunidade judaica ortodoxa de Amsterdão (Países Baixos), cidade onde nasceu, e é certo que a sua liberdade de expressão e de pensamento não foi bem aceite pela ordem religiosa, que o expulsou da sinagoga com a excomunhão humilhante daqueles que detêm o poder e não aceitam refutações. Spinoza declinou trabalhos como professor para se dedicar ao ofício de pensador. Como se a tarefa de filósofo não se adequasse às normas e ordens vigentes, de escolas e universidades.

Mas filosofia apenas não enche a barriga, e enquanto filosofava o nosso personagem polia lentes. Era assim que ganhava a vida. Sabem estes filósofos e intelectuais que escrevem sobre Ética? Alguns mais para parecerem éticos, vivendo muitas das vezes fora da órbita dos seus ensinamentos? Pois vou lhes contar uma história: aposentado por invalidez, Spinoza chegou a se dirigir à seção do governo para pedir a revisão dos seus rendimentos. De forma discreta, sugeriu que o Estado diminuísse o seu benefício, pois não gastava mensalmente aquele montante. Pois bem, está aí um filósofo que pode escrever sobre Ética. Neste eu confio.

Vamos elucidar um pouco as ideias deste pensador? Ele está inserido no período da Filosofia Moderna, sofrendo a forte influência de René Descartes (1596-1650), de quem já tratamos aqui. Observem que já existia um rompimento com o ensinamento oriundo da Patrística e Escolástica da Idade Média. Quando Descartes elenca o “Deus Razão” para guiar a existência do Homem, um dos traços característicos do Antropocentrismo, e quando ele diferencia razão e emoção, pois bem, Spinoza capta bem essa visão e avança nela, também influenciado pelas ideias de Giordano Bruno (1548-1600).

Giordano Bruno

O panteísmo (tudo é Deus) de Bruno é admitido por Spinoza, e é essa conceção que o faz ser expulso da comunidade judaica, uma vez que a sua visão de Deus contrasta em muito com a visão do Deus judaico cristão. Penso que o Deus de Spinoza avança para contrastar o Deus da infantilidade a que muitas pessoas ainda hoje cultuam na nossa atualidade.

O Deus que a maioria de nós conhece: aquele ao qual dirigimos as nossas preces, no entendimento de que ele nos vigia e nos pune quando necessário, por vezes um Deus bonachão que sempre vem ao nosso socorro e que se nos comportarmos bem ganharemos um presente no dia de Natal. Pode parecer típico de crianças desarrazoadas nestas condutas, mas acreditem, acaba sendo a prática de muitos adultos ditos inteligentes.

Pois bem, esse Deus para Spinoza não existe. Deus para ele é a própria Natureza, aquilo que observamos na ordem cósmica e quando observo uma árvore, um rio, um animal no pasto, etc. Somos constituídos da mesma substância e aqui é importante este realce: substância daquilo que somos feitos (somos feitos de quê? E Deus, é feito de quê?). Pois bem, somos feitos da mesma coisa, não há diferenciação entre as nossas substâncias e isso coaduna com a visão de Bruno e expande a ideia panteísta.

Enquanto escrevo este texto, olho para a janela e observo frondosas árvores e a chuva que cai fina. “Marcelo, seja bem-vindo à unidade”. Tudo e todos são uma e a mesma coisa! Brilhante isso. Para aqueles que quiserem aprofundar mais, sugiro estudar a distinção entre a natureza naturans e a natureza naturata. Deixo-lhes como lição de casa, mas podem acreditar, é simples e eficiente a distinção.

Certamente muitos não repararam naquele homem frágil e meio curvado, um mero polidor de lentes, e que bem poderia angariar mais prestígio em vida sendo professor, mas cabe aqui uma distinção: como ele não admitia a intercalação entre os ofícios de filósofo e professor, fechou-se em si mesmo para pensar o seu pensamento, dando livre curso aos seus estudos e não tendo que se adequar às regras do Magistério. Futuramente, Immanuel Kant (1724-1804) abordaria essa dicotomia com o uso privado da razão e o uso público da mesma.

Immanuel Kant

Na sua solidão outorgada, Spinoza vivia em companhia de gatos e preocupado com a liberdade de ir e vir dos bichanos, fez uma abertura na parede de sua casa para não impedir esse movimento. Escrevo sobre liberdade para aventar à ideia proposta por ele, pois como somos fagulhas de Deus e portanto, somos todos Deuses, devemos exercitar essa liberdade de pensar com a nossa própria cabeça, não nos moldarmos a regras impostas por instituições (está aí o motivo justo de ele não querer pertencer a uma instituição) e propor dessa forma a separação entre a Religião e o Estado, pois devemos contextualizar que naquele período havia ainda a ideia do Poder Divino auferido pelos monarcas.

Um filósofo por vezes impenetrável, mas para aqueles que se dedicarem ao estudo, obterão satisfação advinda de uma mente tão lúcida e límpida, um homem de compleição física frágil, mas uma mente privilegiada que demarcou o seu nome na História da Filosofia como um dos marcos expondo as suas teses. E para os ignorantes que o condenaram na sinagoga, apenas devido ao facto de ele não professar um Deus que não era um Deus deles, vale a constatação: enquanto o polidor de lentes figura nos anais da Filosofia, da turba não sei nem os nomes. O anonimato sempre acomete aos medíocres e covardes.

Algumas conceções sobre este Deus libertador de Spinoza: “Deus é o Ente absolutamente infinito”; “Deus não é um Ser”; “Deus é o produtor de si mesmo, mas Deus não é Criador”; “Em Deus, potência é igual ao ato” (lembram-se de Aristóteles?)”; “Deus não possui vontade”; “Deus não é aquele que fica nos apontando e nos julgando”.

A guisa de exposição acerca da intolerância religiosa, transcrevo aqui a Carta de Excomunhão a Spinoza feita pela sinagoga, e depois de lê-la, fico a imaginar se terei eu também uma parcela da maldição concedida a ele, a partir do momento em que exalto a sua filosofia? Ora bolas, por vezes a ignorância é bastante divertida. Cito a Excomunhão:

Os senhores do Mahamad fazem saber a vossas mercês: como há dias que, tendo notícia das más opiniões de Baruch de Espinosa, procuraram por diferentes caminhos e promessas retirá-lo dos seus maus caminhos; e que, não podendo remediá-lo, antes, pelo contrário, tendo a cada dia maiores notícias das horrendas heresias que praticava e ensinava, e das enormes obras que praticava; tendo disso muitas testemunhas fidedignas que depuseram e testemunharam tudo em presença de dito Espinosa, de que ficou convencido, o qual tendo tudo examinado em presença dos Senhores Hahamín, deliberaram com o seu parecer que dito Espinosa seja excomungado e apartado de toda nação de Israel como atualmente o põe em herém, com o Herém seguinte:

Com a sentença dos Anjos, com dito dos Santos, com o consentimento do Deus Bendito e o consentimento de todo este Kahal Kados, diante dos Santos Sepharin, estes, com seiscentos e treze parceiros que estão escritos neles, nós excomungamos, apartamos, amaldiçoamos e praguejamos a Baruch de Espinosa, como o herém que excomungou Josué a Jericó, com a maldição que maldisse Elias aos moços, e com todas as maldições que estão escritas na Lei.

Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar e maldito seja em seu levantar, maldito ele em seu sair e maldito ele em seu entrar; não queira Adonai perdoar a ele, que então semeie o furor de Adonai e seu zelo neste homem e caia nele todas as maldições escritas no livro desta Lei. E vós, os apegados com Adonai, vosso Deus, sejais atento todos vós hoje. Advertindo que ninguém lhe pode falar oralmente nem por escrito, nem lhe fazer nenhum favor, nem estar com ele debaixo do mesmo teto, nem junto com ele a menos de quatro côvados (três palmos, isto é, 0,66m; cúbito), nem ler papel algum feito ou escrito por ele.

Marcelo Pereira Rodrigues

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One thought on “Spinoza: O brilhantismo do filósofo polidor de lentes

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