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Márcia contatou Gregório. Fizeram as pazes. Márcia admitiu que tinha se excedido, Gregório relevou e combinaram de se encontrar. No encontro, Márcia confiou ao amigo uma missão: ir junto com ela a uma favela barra pesada, pois tinha que resolver questões pessoais. Gregório quis saber se se tratava de conversa com traficante, ao que a feminista lésbica adiantou que não. Ela ficou receosa de ir de automóvel, pegou um táxi que, prudentemente, a deixou no meio da subida, “Espero que vocês entendam, mas mesmo à luz do dia, esse lugar inspira medo!”. Gregório ficou receoso, mas se ateve. Márcia parecia decidida e não seria nenhum empecilho que a faria desistir. Gregório sondou, antes mesmo de despacharem o taxista;
— Márcia, essa questão não pode ser resolvida lá embaixo?
— Não, acredite! – pagou a corrida. O taxista acelerou ao se despedir. – Certas questões devem ser tratadas no ambiente propício.
— Tá certo.
— E ademais, e sem querer te provocar, perca o medo que você tem das pessoas. Aqui não é fuzil ou revólver ou drogas o tempo todo. Fique tranquilo. Enturme-se. Perca esse ar de sociólogo estudando o lugar. Está parecendo detetive, investigador. Cuidado, eles podem matar você só pela desconfiança – realmente, Márcia parecia à vontade como se residisse ali havia muito.
Gregório procurou relaxar, cumprimentou crianças que brincavam de golas de gude e outras que disputavam uma aguerrida pelada. Tornou a perguntar:
— O que tem de tão importante a tratar aqui? – com discrição.
— Uma questão pessoal. Já já te falo.
— Tá bom.
Informaram-se sobre o Beco do Desespero, subiram ainda mais e ambos viram o esgoto a céu aberto que escorria de um morro. Com muito custo, chegaram ao beco. Uma sequência de barracões ordinários se apresentou às vistas de ambos. Num deles, com basculante onde se sobressaía o rosto imprensado de uma lunática que pedia socorro e a seguir um com uma inscrição na vertical, em letras verdes onde solenemente se lia BICHA. Márcia parou ali, reconheceu o lugar e indicou ao amigo que haviam chegado. Não foi preciso baterem à porta. A mesma estava aberta e de cara Gregório percebeu um chão de cimento grosso, uma poltrona ordinária, um radinho de pilha e, no cômodo contíguo, um homem que fritava uma linguiça num fogão de duas bocas. O lugar era sujo e o banheiro ficava do lado de fora, uma fossa. O homem pareceu não se dar conta das visitas, estava concentrado na fritura e a sujeira impregnava o seu corpo tanto quanto o ambiente completo. Ouviu chamar:
— Pai?
O homem se virou, não demonstrando nenhuma surpresa e, a bem da verdade, parecia ausente e apático, atendo-se apenas ao fogão. De forma autômato, desligou o fogão. Olhou demoradamente a filha e indicou que se sentasse, na única poltrona existente ali.
— Pai, estou bem.
— O que veio fazer aqui? Aqui é perigoso… e quem é este? Seu namorado?
— Não, sou amigo dela – respondeu um atônito Gregório.
— Sente-se, rapaz.
— Obrigado! Estou bem assim, – virando-se para Márcia – quer que espere lá fora?
— Você é quem sabe? Se não suporta a imundície, pode sair – falou, seca. Sua voz estava metálica.
— Tá bom, eu fico – e sentou-se na desconfortável poltrona.
— Veio me esculachar? – perguntou o pai.
— Não, vim apenas para te ver, e, a bem da verdade, nem sei porque vim.
— Você nunca gostou de mim. Tanto faz. Veio se satisfazer com a minha situação, isso é certo.
Gregório estava ali, bastante surpreso ainda. O clima era amistoso, tipo um israelense e um palestino discutindo sobre a Faixa de Gaza. Um menino entrou de forma abrupta no barracão, para recuperar a bola que havia entrado ali. Saiu logo, mas ainda teve tempo de gritar, para o velho: “Bicha!”.
— Pai – Márcia escandiu bem as palavras – não se trata de gostar ou não.
— O que você deseja?
— Soube do asilo. Com muito custo, descobri o seu paradeiro. Mamãe diz que te perdoa, eu não, mas mamãe. Faço isso por ela. É para o senhor juntar as suas coisas e voltar comigo.
— Não posso – chegou-se mais perto de Márcia.
— Poder, pode. E te peço isso pela minha mãe, acredite.
— Não posso mesmo. Estava bem no asilo, merda o que aconteceu lá.
— O que aconteceu lá? – perguntou um assustado Gregório. Arrependeu-se da pergunta, levantou-se da poltrona e deu lugar ao velho, que veio arrastando e se sentou. Márcia se surpreendeu com a pergunta inopina do amigo.
— Um caminhão, rapaz, um caminhão. Na verdade, a casa já estava caindo aos pedaços. Uma miséria só. Aí se deu a tragédia. Veio um caminhão desgovernado, atravessou a parede do quarto e matou um velho amalucado que dizia ser perseguido pela CIA, que maluco! Uma merda só. Matou também a senhora que estava no mesmo beliche, enfim, a batida foi tão forte que comprometeu a estrutura do quarto inteiro. Já superlotado, anunciaram que não teriam mais lugar e que era para eu e mais três, do quarto ao lado, também afetado, procurarmos nossos familiares. Lúcido, aceitei de bom grado sair daquele inferno. Vim para cá.
— Então o senhor quase morreu? – perguntou Márcia.
— Para a sua tristeza, isso não se deu – alfinetou.
— Olha aqui, não estou querendo discutir coisas do passado nem nada. Vim somente te buscar, pois mamãe assim o exigiu. Atenha-se a isso.
— Não irei.
— Eu insisto.
Gregório interveio, dirigindo-se ao velho:
— Senhor, desculpe-me dizer, mas o lugar aqui é bem perigoso.
— Perigoso é eu estar ao lado da minha filha – rosnou o resignado pai – pergunta pra ela.
— Bem, vou esperar lá fora – caiu a ficha de Gregório.
— Fique – ordenou Márcia.
— Tudo bem.
— Minha filha ainda tem trauma de ficar a sós comigo, né, filhinha? – zombou o pai – contou para o seu amigo?
— Não – observavam-se lágrimas nos olhos da filha.
— Então conte.
— Ou não – ponderou o professor.
— Ah, conte filhinha, conte…
— Acho não ser necessário – tornou o professor.
— Colocava a minha filhinha para chupar – disse um frio pai.
Márcia empalideceu. Gregório tremeu as pernas. O pai sorriu. Márcia deu às costas ao pai, chorando copiosamente. Gregório parecia pregado ao chão. O pai sorria e parecia se divertir com a tortura.
— Sabem por que me chamam de bicha? Chupo a pica de todos os rapazes daqui. Meu pinto não sobe mais, agora devo pagar pelo que fiz a essa vadia.
Márcia explodiu. Fechou a mão tão forte e socou o pai que teve o maxilar deslocado. Gregório a segurou, a muito custo, e sentiu em si seios tão perfeitos. Mas não era hora para esses sentimentos, precisava deter a amiga.
— Calma, vamos embora.
O velho ria, e escandia as palavras:
— Colocava essa putinha para chupar com 8, 9 anos. A safadinha bem que gostava. Começava com pirulito de morango, uva, lembra-se, putinha? E você bem que gostava. Batia o pau na sua carinha de anjo.
Um asco tomou a garganta de Gregório. Dominou-o. Teve enjoo. Abraçou Márcia para que ela não avançasse sobre o pai. Levou-a para fora, com muito custo.
— Márcia, se controle.
— Mato esse velho!
Risadas ensandecidas ressoavam no cômodo imundo. O pai começou a gritar obscenidades, Márcia estava transtornada e dois traficantes que passavam por ali observavam tudo, em silêncio. Armados na cintura, não interviram. Gregório levou-a para um lugar afastado, abraçou-a e afagou seus cabelos curtos. Aos poucos Márcia se acalmou.
— Desculpe-me tê-lo feito passar por isso.
— Não se preocupe – achou por bem não mais especular acerca do acidente.
— Tudo o que ele falou é verdade, ele é lúcido!
— Não precisa falar.
— Eu quero falar. Posso?
— Sim.
E Márcia desabafou:
— Agora você compreende as coisas, né? Sabe o motivo daquela fuga no apartamento, quando estávamos a sós? Não via você, via apenas esse filho da puta. Minha sexualidade se apresentou comprometida, cresci com medo e recalques. Odiava homens, odeio até hoje. Mas agora observo algo: parece que, por mais doloroso que tenha sido esse encontro com esse desgraçado, as coisas se resolvem. Ele está morto, Gregório! Definitivamente morto! Posso até anunciar isso à minha mãe, para que ela se sossegue e entenda que não é responsável por esse lixo.
— Márcia, não te julgo.
— Talvez agora você entenda muitas de minhas motivações. Para quem ver a coisa de fora, dirá apenas que uma filha abandonou o seu pai na miséria. E viu ele falando; o filho da puta é tão demoníaco que no acidente morreram os seus dois companheiros de quarto. O maldito filho da puta não.
Conversavam e desciam. Num certo ponto, Gregório pegou um transporte clandestino e, meia hora depois, estavam no centro belorizontino. Gregório percebeu que havia assistido a um filme de terror no morro. De volta às suas circunstâncias. Abraçou carinhosamente a amiga e certificou-se de que ela estava bem. Despediram-se. “Como suportar tudo isso?”, a constante pergunta de Carla. Antes que se despedissem, Márcia tirou uma revista da sua bolsa e pediu uma opinião crítica do filósofo.
Gregório foi ao apartamento. Márcia comunicou à mãe, sem nenhuma emoção, que o pai havia morrido no asilo acidentado por um caminhão desgovernado. A mãe chorou oficialmente, relembrou coisas do passado procurando redenção pelo abandono e mal entendidos que eram vários. Enxugou mais uma vez as lágrimas e informou:
— Filha, tem assado no micro-ondas.
E Márcia jantou, saboreando cada pedaço da carne de porco e entendendo que havia enterrado o passado. Sim, a morte resolve tudo.
Gregório chegou ao apartamento, sentou-se e foi ler o editorial da revista da amiga. Parou no primeiro parágrafo do Editorial. Pensou que, para salvaguardar a amizade de sua amiga, o melhor seria não enveredar por nenhuma questão intelectual e de gênero. Jogou a revista no cesto de lixo.