O capítulo anterior aqui.
Tarde da noite no escritório. Frederico sabe que será preso. Virando copos de uísque, intenta esquecer, pelo menos naquela noite. Como começou? Atoleiro. Areia movediça. Reflete: “Quando se está no atoleiro, qualquer coisa que fazemos só nos faz afundar mais e mais. O negócio é ficar parado”. Será que a Polícia Civil e Federal tinham consciência da quase morte de sua esposa? Saíra do hospital com Deborah desenganada. Ligara para a cunhada, que viesse de Curitiba para auxiliar na guarda dos filhos. Horas antes, negociara com a empregada a morada no apartamento, pelo menos por enquanto. Pensou na primeira fraude: “Fred, pode assinar, isso todo mundo faz, é tranquilo!”. Fraude em licitação de merenda escolar. Ganhou uma boa bolada. Mais tarde, o agente corruptor nem precisou convencer: tacitamente, fê-lo entender que ele já era parte do esquema. “Fred, uma vez dentro, não se sai mais!”. A coisa foi virando um nó, à medida em que o dinheiro entrava em sua conta, o esquecimento dos malfeitos iam ocorrendo. Muita pressão, nada que uma viagem à Itália não resolvesse. Fez cruzeiro pelas ilhas gregas. Na última ida à Europa, foi sozinho, pois sua esposa não podia interromper o tratamento. No escritório, exigiu uma sala mais espaçada e deixou de atender a pequenos casos.
Ficava agora por conta de aplicações financeiras e sua conta bancária dera um salto considerável. Seus métodos foram ficando mais sofisticados, mas, ao mesmo tempo a Receita Federal passou a vigiá-lo, pois, por mais que escondesse dinheiro no exterior e não movimentasse o montante oriundo da corrupção, bem, cruzando dados de muitos envolvidos em esquemas de corrupção surgiu, o seu nome, em uma tramoia que envolvia caixa 2 na campanha do governador do estado. A Federal já o estava investigando, mas a sua preocupação de agora era com a Polícia Civil do Estado, na fraude da merenda escolar sem licitação, onde assinara o laudo para a Prefeitura. Enfim, a coisa estava muito enrolada. Sabia que em breve a Polícia levaria o seu BMW, a sua Mercedes, a sua Ferrari (e olha que nem tivera tempo de dar uma volta nela com os seus filhos) e anteviu o interrogatório. E se ele se entregasse? Evitaria dessa forma o constrangimento de a polícia bater à sua porta, às seis da manhã. Refletiu. Um caso a se pensar. Bebeu mais um trago e foi com raiva que lembrou que se esquecera de suas origens e essências. O celular tocou. Sabia de onde era. Sabia o assunto. “Senhor Frederico, lamentamos te informar: a sua esposa faleceu.” Quem deu a notícia certamente já sabia do seu envolvimento nos esquemas de corrupção. Mas não foi sádico, apenas informou, com voz compreensiva, mas fria e distante.
Deborah chegou a uma fase aguda do tratamento. A mais sofrida. Diego e Fernando foram poupados e só souberam do tratamento por alto. Mas quando a mãe teve que ficar internada, souberam que o caso era grave. A solidariedade apresentada no Facebook se mostrou como de fato era: virtual. Radioterapia, quimioterapia, o cancro que se espalhava pelo corpo com a força feroz da morte. Fred vivia um inferno astral. Denunciado na OAB e respondendo a um inquérito na Polícia Civil por fraude e corrupção, via perder de vista o horizonte de uma família feliz. Fernando estava depressivo, consultava-se com uma psicóloga, e Diego foi ficando a cada dia mais sorumbático, arredio. Soubera via imprensa do malfeito de seu pai e procurou não especular com o próprio. Arrumou briga na escola, devido a piadinhas sobre o seu pai, foi suspenso e aproveitava o tempo para ficar no hospital, ao lado da mãe. Triste rotina.
Luzia, que estava de plantão, e já radicada definitivamente na casa, foi informada e Fred tentou se conter (“tenho que parar de beber”) para tomar as providências. Ele mesmo falaria com os filhos. Levantou-se, bebeu o restante do copo e chamou um Uber, meio trôpego chegou em casa e abraçou Diego e Fernando. Diálogo silencioso. Já incumbira uma secretária e os agentes funerários faziam os preparativos e foi assim, na alta madrugada, que viu seus filhos irem para o quarto e uma Luzia sentada á sua frente, constrangida. Fred tentava recuperar o equilíbrio. Sopesava as palavras:
— Luzia, conto com você para olhar os meninos.
— Sim, patrão.
— Diana virá de Curitiba agora para o enterro.
Luzia chorou copiosamente. Gostava verdadeiramente da patroa. Perguntou:
— O senhor irá ao hospital?
— Não. Os urubus estão todos lá. Agora Deborah já está sendo preparada, nem sei se irei ao velório. Daqui a pouco chegam os policiais.
Luzia, que sabia do caso escabroso de corrupção, abaixou a cabeça.
— Mas eles terão coração, patrão.
— Duvido muito – pediu mais uma garrafa e dessa vez a empregada não o obedeceu.
— Me dá!
— Não, patrão. Sinto muito, mas não vou te obedecer.
— Quero esquecer de tudo.
Realmente, Frederico tinha se enrolado de vez em seus negócios. Perdera dois sócios, que não coadunaram com os seus desvios, perdera a sua amada esposa e foi com pesar que sentiu que perderia os seus filhos. Anteviu as horas e foi com impaciência que esperou. Não demoraria muito e o inferno se concretizaria. Seu advogado ligou, encontrou-o no fixo e informou que estava tentando remediar a situação, isso pela madrugada. Realmente, vazara a operação da Polícia Civil que dentro de poucas horas teria mais carniça para a imprensa. Frederico chorou, desligou e foi amparado por Luzia. Apagou no sofá mesmo.
Foi acordado com metralhadoras, algemas e uma carta de busca e apreensão. O inferno se concretizara. Muitos policiais e o seu advogado já estava ali. Diego e Fernando foram gentilmente poupados, mas o trauma já estava feito. “Será que a Polícia sabe que perdi a minha esposa hoje?”, ficou na dúvida. Seu advogado, sempre muito ponderado, informou. Lá fora, o grande alarido da imprensa e os vizinhos do prédio já percebiam o caos instaurado. Sirenes, cachorros e policiais. O delegado responsável pela prisão viu que a coisa estava saindo de controle. Ordenou aos auxiliares para que fechassem a casa, apreendessem os automóveis, joias e possível dinheiro no cofre, levassem o detido e que na delegacia conversariam sobre o enterro da esposa do acusado. Ordens eram gritadas a plenos pulmões, como agulhas dentro da cabeça fraca de Frederico, que estava dopado com tanto álcool. “Que essa merda termine logo”, pensou. Queria dormir, apagar de vez, mas sabia que isso não seria possível. Seu advogado, abnegado, tentava convencer o delegado da não necessidade daquele circo. Mas o circo já estava armado. Seis viaturas deixaram o prédio, três policiais levaram os automóveis apreendidos e Luzia ficou com aquele gosto azedo na boca. Foi ao quarto e viu um Diego chorando e um Fernando apalermado. Luzia sentia a cabeça doer, abraçou os meninos e disse que ficaria ali, com eles.
— Mamãe morreu – balbuciou Fernando.
— Sim, mamãe foi para o céu – respondeu a empregada.
— E tudo no mesmo dia! – declarou o óbvio Diego.
— Mamãe estava sofrendo muito. Foi descansar – atalhou Luzia.
— E papai foi preso – atalhou Diego.
E ficaram nesse diálogo mudo, e da funerária ligaram para informar a hora do sepultamento. Fernando chorou, Diego confirmou para as 16 horas e duvidou se o seu pai estaria presente. Pela manhã mesmo, chegou a tia que os abraçou, passou a dar ordens a uma Luzia apatetada pela falta de sono e pelas circunstâncias. Parentes avolumaram a casa e aos poucos decisões foram sendo tomadas.
Foi indiferente aos filhos verem o pai no funeral. Sem algemas, mas acompanhado de dois policiais. Diálogo mudo entre pai e filhos, ainda mais que Frederico não queria expor mais os meninos a essa vergonha. Engoliu o choro, a vergonha e o desejo de abraçar os filhos. Após o funeral, e saindo de um automóvel não personalizado, refletiu: “Estou fodido!”. Estava mesmo…
Fernando se enfurnou definitivamente, Diego, após decidir não mais ir à escola (pelo menos já tinha passado de ano e estava de férias) preocupou-se com o mutismo do irmão. Percebeu em Luzia uma pessoa sensível e que se preocupava realmente com a família, tinha sempre o cuidado de retirar os jornais e revistas do apartamento, ainda mais as do noticiário policial. No quarto, Diego tenta animar seu irmão, monossilábico e meio catatônico:
— Fé, devemos ser fortes. Mamãe não ia querer te ver assim.
— Tá.
— Olha, pensei em irmos a um shopping, que tal? Vai estrear aquele filme de super-herói que você tinha comentado, lembra?
— Não.
— Olha, gostaria que mamãe te visse assim? Ela estaria chorando, se estivesse viva.
— Sinto a falta dela.
Diego segurou as lágrimas, afastou-se um pouco para ir ao banheiro e retornou, com os olhos vermelhos. Voltou à carga:
— Anima, vai.
— Tá.
— Anima, vai – sacudiu o irmão, que estava impassível.
— Tá – os olhos meio perdidos.
Luzia bateu no quarto, Diego abriu a porta e foi informado que tinha visita. Perguntou quem era e foi informado que se tratava de um professor, chamado Gregório.
Curioso, desceu e fez entrar o professor de redação e escritor. Luzia, que acompanhava, deixou-o a sós e Gregório se apresentou:
— Você não me conhece, mas eu conhecia a sua mãe e senti-me na obrigação de prestar solidariedade. Há um mês, ela me enviou um e-mail pedindo para que eu conversasse com vocês, cadê o seu irmão?
— Está doente, parece meio perdido. Está no quarto.
— Posso vê-lo?
— Não acho uma boa ideia agora. Podemos conversar primeiro, se não se importar.
— Claro, não quis ser invasivo. Desculpe-me. E você, como está? Claro, levando em conta o quadro geral.
— Também perdido. Já soube do meu pai?
— Sim, fiquei a par.
— Na mesma semana, uma mãe morta e um pai preso – sua voz estava lamentosa, quase inaudível.
— É, sei que é barra, mas devemos seguir.
— Você veio conversar comigo por obrigação?
— Não.
— Para especular?
— Não, longe disso.
— Então, qual o motivo?
— Como te disse, recebi a cerca de um mês um e-mail de sua mãe. Ela acreditava que eu poderia conversar com vocês, pediu-me encarecidamente para conversar principalmente contigo, pois sabia que você seria o arrimo do seu irmão.
— Como vocês se conheceram?
— Ela leu um artigo meu, trocou e-mail comigo e passamos a nos comunicar. Pessoalmente, esteve em um lançamento de livro meu, onde eu…
— Ah, então foi nesse lançamento que ela foi vexada.
— Na verdade, sim e não. Não foi proposital de minha parte. Foi uma das participantes que filmou o vídeo.
— Bosta de vídeo.
— Te confesso que não cheguei a ver, mas sei que foi desagradável. Lamento mesmo.
— Desculpe-me te dizer isso: mas não sei o motivo de você estar aqui.
— Bem, não vim por obrigação, nem por especulação, nem por nada. Vim porque quis vir. Mas entendo se você sugerir que eu vá embora.
Diego percebeu que não havia julgamento no semblante de Gregório. Contemporizou. E em memória da mãe, sabia que tinha que tratar bem o anfitrião. Contemporizou:
— Desculpe-me, sinceramente. Pode ficar. Só me desculpe, não sei puxar assunto. E você não é da minha idade. E sem querer ofender, eu nem te conheço.
— Tá, pode deixar, eu puxo assunto.
— Tá.
— Fale-me de como você está…
— Estou péssimo!
— Quer verbalizar?
Pelo jeito de falar, Diego percebeu que o interlocutor era alguém da área de Humanas. Perguntou se o mesmo era psicólogo. Quando foi informado que era formado em Filosofia e que lecionava redação em uma importante escola de Belo Horizonte, interessou-se:
— Professor, como a Filosofia explica a morte?
— Bem, há vários ângulos da questão.
— Vocês filósofos são muito complicados. O que você acha?
— Da morte?
— Sim, da morte.
— Bem, talvez o que eu vá te falar é simplista, mas isso para mim se mostrou pertinente. Na Grécia antiga, vivia um pensador chamado Epicuro.
— Epicuro?
— Sim. Este sujeito opôs vida e morte. Dizia ele: a vida é a totalidade de sensações, e a morte é a ausência de sensações. Bem simples, né? Mas aí é que vem: estamos completamente presentes quando vivemos, sentimos as sensações. Vamos falar de sua mãe, por exemplo. Enquanto estava na batalha pela vida, ela sentiu várias coisas: vontade de viver, medo, amor pela família, insegurança, incertezas, dor (por que não?), enfim… ela sentia sensações e sentimentos.
— E agora…
— E agora ela está privada disso tudo. Ausência de sensações, ela não mais sente. Não está presente, entende?
— Simples assim?
— Simples assim. Bem, pelo menos para Epicuro e tendo a concordar com ele.
— Isso tá me parecendo frases de autoajuda, de para-choque de caminhão.
— Porque é simples. Quer outro exemplo?
Diego estava se interessando pela conversa. Pelo menos no semblante do interlocutor não tinha nada de professoral, pedante. Ouviu:
— Lembra-se do exato momento em que você dormiu ontem?
— Claro que lembro. Foi por volta das onze e meia.
— Não é isso. Lembra-se do exato momento em que o sono veio? Você estava deitado, cochilou e dormiu. Aí eu te pergunto: qual foi o exato momento, naquele milésimo de segundos, em que você dormiu?
— Sei lá, como vou saber?
— Isso mesmo. Nós não sabemos.
— E o que isso tem a ver?
— Desconfio que com a morte se dá a mesma coisa. Quando chega o sono eterno, bem, já não estamos mais presentes, pois estamos com ausência de sensação.
— É, interessante essa sua teoria.
— Minha não, é de Epicuro.
— Legal esse cara! Mas não me consolou.
— A ideia não é te consolar. A ideia é te apresentar um modo de ver as coisas. Dentre tantos.
— Professor, o senhor já perdeu alguém?
O semblante de Gregório ficou taciturno, de repente. Há sete anos, havia perdido a mãe, o que resultou na sua crónica camusiana Hospital. Engoliu em seco. Perdera o seu pai há muito tempo, quando tinha oito anos. Mas veio-lhe à lembrança Carla, que devia ter a mesma idade do seu interlocutor. Diego percebeu o embaraço, e insistiu na pergunta:
— Sim, perdi minha mãe há uns sete anos e agora tive uma perda traumática.
— A menina que se jogou do prédio?
— Você sabe?
— Minha mãe chegou a comentar comigo.
— Carla era o nome dela.
— Então, quer me falar dela?
— Não, sinceramente. Se não se importa.
— Até porque você pretende me ajudar, né?
— Não, longe disso. Vim para te conhecer, em memória de sua mãe.
— Soube do meu pai?
— Sim, soube.
— Um ladrão, que triste!
— Não fale assim. Entenda os motivos dele. Já deve ter gente demais para condená-lo. Faça a parte de advogado de defesa, pelo menos num primeiro momento.
— E sabe o que me deixa puto?
— Não.
— Sinceramente, não sei o quanto de dinheiro de corrupção há nessa roupa que eu estou vestindo. Nessa casa onde moramos…
— Você e seu irmão não são culpados.
— Ladrão! Palavra horrível para um filho falar do pai.
— Sim. Mas insisto: faça o difícil. Se não for perdoá-lo, ao menos tente entender.
— Fácil pra você, né?
— Sei que é complicado. Irá visitá-lo?
— Ainda não sei. A imprensa está fazendo plantão na delegacia. A coisa tá feia.
— É, soube disso. Mas acredite, seu apoio será fundamental para ele. Se eu fosse você, apesar de não ser você, eu iria.
— Tá, mas voltando a falar da morte, você acredita em ressurreição?
Nesse ponto, Gregório sopesou. Lembrou-se da conversa que tivera com Andreia e a sua certeza da salvação pelo poder de Deus e tudo isso com ela frequentando a igreja. No encontro, deu o braço a torcer e observou que a sua razão era manca, mas ele sabia que estava condenado a carregar o bloco de pedra morro acima, tal Sísifo. A razão era a sua pedra. Mas não iria mais proclamar a sua razão como verdade inconteste.
— Não acredito e nem desacredito.
— Como assim?
— Depende da fé de cada um. Não tem certo nem errado. Cada um acredita naquilo que crê. E você, o que acha?
— Típico dos filósofos: respondem uma pergunta com outra pergunta.
Foram interrompidos por Fernando, que se sentou na poltrona ao lado e foi apresentado a Gregório. Este percebeu que o estado catatônico do menino era grave, mas disfarçou.
— Você deve ser o Fernando.
— Tá.
— Tá não, Fê. Fale pelo menos as coisas certas. Estamos diante de um professor de redação. Você deveria responder: “Sou”.
Gregório interveio. Aos poucos, a atenção do menor foi se apresentando, a ponto de levar Gregório para mostrar-lhe um jogo no videogame. Gregório foi ao quarto, foi surrado em quatro partidas e Diego estranhou a comunicação silenciosa do irmão, pelo menos fixado na tela da televisão, absorto em vencer o marmanjo. Gregório fez cara de irritado, exclamou “Assim não tem graça, quarenta e sete a zero!” e despediu-se, sendo interrompido por Luzia que fez questão de que ele tomasse um suco com pão de queijo. A empregada percebeu um ar mais desanuviado em casa, sentiu até algumas risadas e quando Gregório se despediu, comentou com Diego:
— Esse homem é estranho. Fez até o Fernando falar.
— Jogou com ele, acredita?
— Sério?
— Sério.
Diego teve uma clarividência. Faria uma promessa. Uma troca, na verdade. Perdoaria Luísa. Mas mentalizou a questão da seguinte forma: não seria uma pessoa má. Senão, não teria razão de ser julgar os desvios de seu pai. E o que a sua mãe pensaria de um vídeo vazado na Internet, mesmo sem saber que aquele pénis não era de seu filho? Inspirado pela conversa com o confuso professor (riu disso), voltou ao quarto, buscou o vídeo salvo no seu e-mail e o deletou, e ao mesmo tempo confidenciou a Deus:
— Ajude o meu irmão. Tire ele desse estado.
Ao sair, Gregório permitiu-se lembrar de sua infância. 13, 15 anos. Um pouco antes, das coisas que ainda se lembrava. Refletiu sobre o vazio que os jovens de hoje sentiam, com as facilidades todas ali, às mãos. Candeeiro de bois, debulhava milho e batia feijão, tirava leite e limpava curral, isso com idade tenra, 8, 9 anos. Crescera na roça. Casa sem luz elétrica, mas com água que jorrava de uma bica 24 horas por dia, caminhava quarenta minutos para ir à escola na zona rural. Estudava à tarde. Não foram poucas às vezes em que ficou atolado no barro da estrada de terra e segurava como podia o caderno protegido por um plástico. De boas lembranças daquela época, tudo: a exigência e o carinho da mãe, o auxílio do tio, pai falecido nesse período, só saiu da roça para fazer o ensino médio em uma cidade um pouquinho maior. Sua mãe arrendou as terras, alugou uma casinha nessa cidade e, aos poucos, Gregório foi tendo acesso ao mundo através da telinha da televisão, que mostrava o Rio de Janeiro e Belo Horizonte em todo o seu esplendor, embora o menino suspeitasse se tratar de uma selva de pedra. Acostumado com as agruras da vida, já tinha mãos calejadas e, de tudo o que se lembra, não teve conflitos de infância. Tornou-se adulto muito cedo, com 12, 13 anos. Trabalhou numa lanchonete, estudava à noite e ia auxiliando a mãe nas contas da casa. Sua mãe adoeceu, passou a ser o arrimo de família com 15 anos. Trabalhava, estudava, namorava e, sendo forasteiro, brigava com outros meninos que o invejavam por ter conquistado a cobiçada filha do prefeito. De têmpora forte, conseguiu respeito e admiração dos professores e dos demais colegas, pois, da mesma maneira que era um estudante exemplar, nadava na cachoeira e jogava futebol como um bom ponta-direita e não se deixou influenciar pela mesa farta e luxo da casa do prefeito. Quando fez 18, sugeriu à mãe se mudarem para uma cidade um pouco maior. Ficou dececionado com o fim do namoro e, como tudo na cidade lhe lembrava Rosinha, deixou a opção à mãe. Se esta não quisesse acompanhá-lo, ele viria de quinze em quinze dias. Muito apegada a ele, sua mãe vendeu definitivamente o pequeno sítio, entregou as chaves da casa alugada e partiu.
Chegando à nova cidade, que visitava só ocasionalmente, Gregório arranjou rapidamente um serviço como servente de pedreiro. Aos finais de semana, trabalhava também como garçom. Adquiriu a primeira televisão, para deleite da mãe que ficava a acompanhar novelas, e dedicava-se aos estudos e a acompanhar o Botafogo nos jogos de futebol; crescera acompanhando o sofrimento do time da Estrela Solitária e, quando em 1989 Maurício pôs fim ao jejum de 21 anos do clube, Gregório se apaixonou de vez, entendendo como superação e se sentindo assim um autêntico representante. Força era uma de suas características. Quando largou o serviço de garçom aos finais de semana, já tinha tempo livre para namorar, flertar, paquerar todas e indiscriminadamente. Fazia isso mais para se divertir e sentindo-se adulto desde sempre, percebera que não tivera faniquitos adolescentes ao longo de sua existência. Ainda bem. Aos 24, prestou vestibular para Filosofia em Ouro Preto e passou. Residiu lá, numa república pra lá de conservadora (ainda bem) e quando, num dos anos seguintes, viu adentrar maconheiros e bichos grilos, e, antes que os enforcassem, saiu e alugou um dormitório. Completou seus estudos, formou-se com louvor e retornou à cidade, para junto da mãe. Começou a escrever artigos, foi crescendo a confiança quando se viu publicado nos melhores cadernos de ideias do país e lecionava redação para pré-vestibulandos. Como sempre fora económico e espartano, juntava bom dinheiro e administrava a casa junto à mãe. Adquiriu móveis mais resistentes, deu conforto à mãe e viu-a definhar com um câncer que a levou, aos 62 anos.
Mesmo de têmpora forte, Gregório baqueou. Lembrou-se de “O Estrangeiro” de Camus e escreveu um de seus mais sentidos e belíssimos textos, Hospital. Como tudo na cidade onde morava lhe fizesse lembrar a mãe, rumou à capital. Com boas referências, fez entrevista em um importante colégio e foi contratado como professor substituto. Ficou assim até o ano seguinte, quando foi efetivado e passou a lecionar redação para os alunos do ensino médio. Observava como uma espécie de espelho retorcido adolescentes que não passaram e nem passariam pelo que ele passou na sua infância. Salvo exceções, crianças mimadas que tinham tudo ao dispor, e Gregório sabia respeitá-los, não tinham culpa se a vida e as circunstâncias não tinham preparado para eles experiências duras, de pertencimento à terra. Por isso admirava “Vidas Secas“, de Graciliano Ramos, e toda aquela miséria exposta. Lembrou-se de quando propusera um trabalho aos alunos com aquele livro; todos entenderam Fabiano como um alienígena, a cachorrinha Baleia como um animal pré-histórico e o sertão como um planeta Marte longevo. Não era a realidade deles. Quando muito, poderia ser a realidade de alguns de seus empregados. Sorriu ao fazer essa associação. Sorriu-se ao lembrar-se de uma garota linda que, com 14 anos e já no primeiro ano, aludiu à história de Graciliano como uma metáfora da vida, o deserto que habita a cada um de nós, o pertencimento à terra e à analogia com os primeiros filósofos chamados pré-socráticos, que viviam filosofando com os pés no chão, nunca com as cabeças nas nuvens. Lembrava-se até hoje do diálogo:
— Espera aí, menina. Não está indo rápido demais?
— Não. Gosto de ler. Gosto de pensar. De ter ideias próprias. Sei que você é filósofo. Quando li Vidas Secas senti esse pertencimento do autor às coisas da terra, remeti a Nietzsche que buscou as essências…
— Peraí, você já lê Nietzsche?
— Sim, amo.
— Mas voltando: o que a senhorita sabe da terra?
— Não sou menina mimada. Olha as minhas mãos! – com orgulho mostrou calos e uma ferida na palma da mão direita – mamãe não pode ver isso, mas ontem mesmo ajudei papai no sítio, desenrolando arame e cercando a cerca.
— Pleonasmo.
— Sim, cercando a cerca. Mas não seja entojado, não estamos em aula.
— Sim, desculpe-me. Foi só para brincar mesmo. Continue.
— Não via o meu pai havia quase seis meses. Marcamos de nos reunir no sítio, ele fez questão de conversar comigo arrumando as coisas do lugar. Acertando moirão, supervisionando os roçadores, conversando com o caseiro.
— Que bom que você tem essa oportunidade.
— Não é só você que cresceu na roça, professor. Eu sei o que você fala. Entendo.
— Sim, é muito bom mesmo. Ar puro, silêncio, acordar com o canto do galo, buscar ovo no balaio…
—… tirar leite de vaca, nadar na cachoeira…
—… isso é mesmo o paraíso.
— Bom que pensa assim.
— Sim, penso. Sabe menina, observo a sua participação com muito afinco nas minhas aulas, e sei que é uma excelente aluna, pelos meus colegas. Você tem um futuro brilhante pela frente.
— Futuro brilhante?! O sonho de consumo de toda classe alta? – riu com ironia.
— Não falei nesse aspeto, juro! – sentiu-se confrontado com a veia irônica da aluna.
— É que você acaba de falar dois clichês: além do futuro brilhante, excelente aluna.
— Mas é verdade!
— Sei. Diz isso para todas? – sorriu, parecendo se divertir com o embaraço do professor.
— Não digo, juro. Só penso que você é jovem demais para ficar com minhocas na cabeça.
— Mas foi você quem provocou a turma, trazendo Fabiano, Sinhá e baleia para o nosso universo. A culpa é sua – riu.
— Tá. Mas você problematiza tudo.
— Vocês filósofos é que problematizam tudo, ainda bem, aliás.
O sinal anunciando o fim do intervalo se deu, Gregório pegou a sua pasta e se despediu, um pouco desconcertado:
— Foi bom te conhecer um pouquinho mais. Desculpe-me perguntar: como se chama?
— Carla, ao seu dispor – riu e retornou à sua mesa.
A morte colheu Luísa no cruzamento da Afonso Pena com a Rio de Janeiro. Absorta no celular, atravessou com o sinal verde para os automóveis e foi arrebentada por um ônibus intermunicipal. Seu atropelamento foi pouco noticiado, salvo engano por um jornal que vendia sangue ao longo de suas páginas. Não temos notícia do estado de sua mãe quando soube do acontecido.
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