OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Se não leram o conto passado, podem reavivar a memória aqui!

Foi por acaso que Nico foi a Buenos Aires. Resolveu na semana ainda. Comprou passagens pela Aerolíneas Argentinas e reservou hotel no NH Florida. Viajou para uma estadia de cinco dias, e nem roteiro levou. Percebeu que não tinha adquirido guia turístico e a viagem de improviso foi facilitada pela não necessidade de passaporte. Já em Confins, para o voo das nove e meia da manhã, ficou ansioso. Chegou ao aeroporto às sete, receoso pela primeira viagem de avião. Dirigiu-se ao balcão do check in, enrolou-se com algumas providências e, depois de muitas mancadas, se viu na área de embarque. Discretamente, perguntou a uns seis no portão de embarque se eles estavam ali para tomar o avião. “Sim”, disseram. Tranquilizou-se e intentou seguir o fluxo.

Ficou de olho em um casal. Já se acostumou com o castelhano e, quando se sentou na poltrona do avião, tremeu. Levantou-se um pouco e tranquilizou-se ao perceber os demais passageiros calmos e, para o seu conforto supremo, duas crianças brincavam animadamente como se estivessem em um parque de diversões. “Não ficariam assim se o avião fosse cair. E, ademais, eu não falei que já havia viajado pelo mundo todo? Sidney, Nova York, Tóquio, Paris? Era mentira, eu sei, mas devo me acalmar e entender que avião não cai de uma hora para outra”, refletiu. A aeronave fez decolagem perfeita, Nico sentiu a sua primeira volta no estômago e, como exigira a janelinha, ficou a admirar a vista lá de cima, com nuvens que pareciam algodão. Sobrevoou os Andes e, quando desceu no aeroporto, foi com alívio que se viu em solo estrangeiro. O primeiro país que visitava. Perdera o selo. Negociou um táxi, pagou 200 pesos pela corrida e chegou ao hotel. Atrapalhou-se também com a ficha de cadastro e, como era meio-dia e acordara cedo, dormiu. À tardinha, saiu para almoçar. Perguntou na receção um lugar mais indicado para um primeiro dia e um domingo. O rececionista ofereceu a sugestão das Galerias Pacífico, shopping bem ali ao lado. Agradeceu e foi. Ficou deslumbrado com o lugar, observou uma fonte muito bonita e afrescos no teto que o levaram a lembrar do que não havia visitado, pelos menos oficialmente, o teto da Capela Sistina. Tirou fotos. Almoçou, passeou, entrou na livraria Cúspide e foi com encanto que viu o Centro Cultural Jorge Luís Borges. Maravilhou-se ali: exposições de arte, quadros, mostras e um acervo da vida do maior escritor argentino. Pensou que Gregório iria gostar de estar ali. Trocou reais por pesos e passeou nos arredores da Calle Florida. De dois em dois minutos se deparava com cambistas não oficiais que intentavam trocar moedas. Depois de muito bater perna, retornou ao hotel, esgotado. Dormiu como um rei.

No dia seguinte, resolveu sair a esmo, isso após um café da manhã caprichado. Fotografou prédios, alguns com nítida influência espanhola, e começou a perceber que Buenos Aires era uma das cidades mais arborizadas do mundo. Bem, para ele que não conhecia o mundo, era assim que pensava. Viu praças, árvores, jardins, passeou no entorno e chegou a Puerto Madero. Tirou fotos da Puente de la Mujer. Passou em frente ao monumento a Perón. Visitou o Ministério de Defensa, no Edifício Libertador, e encantou-se com o lugar arborizado e com as peças militares do espaço, como um soldado com baioneta e com um buraco no peito. Deu um pulo na Casa Rosada e foi a Plaza de Mayo. Sinceramente, não achou nada demais na casa de governo do presidente argentino, se bem que viu só de fora. Bateu pernas no entorno, voltou a Puerto Madero e almoçou numa grelha de fazer inveja ao mais indiferente dos jacarés. Passou o resto do dia lá, tirando fotos dos navios atracados, sendo um deles museu aberto para visitação, e percebeu que estava relaxado a ponto de não acessar suas redes sociais para dar informes. Terminou com duas garrafas de vinho e chamou um táxi, meio bêbado, para o hotel. Apagou.

Na terça, uma passadinha nas Galerias Pacífico para a troca de moedas, mais algumas fotos no lugar, saiu pelas calles no entorno e, depois de muito bater pernas, viu-se diante do Obelisco 9 de Julho e se maravilhou com as avenidas largas, sendo a Corrientes, pelos menos para os argentinos, a mais larga e extensa do mundo. Mas Nico já ouvira afirmar que era um pouco da megalomania argentina, para quem Pelé não servia nem para amarrar as chuteiras de Messi e para quem Diego Armando Maradona era Deus (sim, tinha até igreja). Megalomania era um assunto que Nico conhecia bem. Parou em cafés, refrescou-se com a Quilmes e refrigerantes e foi com satisfação que entendeu estar em vários cafés parisienses (a arquitetura do lugar lembrava muito; afinal, ele já havia lido e estudado tanto a respeito desses cenários europeus que se reconheceu ali, como, por exemplo, quando parou no paradisíaco Café Tortoni e não sabia se consumia ou se abandonava a mesa para fotografar). Do lado externo, pediu a um transeunte para que o fotografasse junto à escultura do genial Horacio Ferrer, uruguaio de nascimento, mas argentino por adoção, ele que foi escritor, poeta e historiador do tango, tendo composto em parceria com grandes nomes, tais Astor Piazzolla. Dentro, apaixonou-se pelos lustres, pelos quadros de época e pelas pilastras, todas elegantes e exalando harmonia e sofisticação. Garçons elegantemente trajados serviam e ele passeou para ver a escultura de Borges, feita por Juan Carlos Ferraro. Fotografou a escultura de Gustavo Fernández, que retratava três personalidades que frequentavam o café: Borges, Carlos Gardel e Alfonsina Storni. Pensou em Gregório. Ele iria gostar de conhecer aquele lugar. Quando retornasse, daria um jeito de fazer as pazes com o escritor. Exausto após assistir a uma apresentação de tango clássico, chamou o táxi e voltou ao hotel.

Alfonsina Storni

No dia seguinte, encantou-se com os jardins do elegante bairro de Palermo. Percebeu que o povo argentino preservava a sua história com monumentos que lembravam as suas dezenas e dezenas de heróis libertadores. Dirigiu-se ao Jardín Japonés, imaginou Tóquio e os seus jardins e acalmou-se no lugar, com o clima maravilhoso proporcionado por muito verde, “regatos que tocavam músicas” e esculturas e menções nipónicas que saltavam aos olhos. Carpas multicoloridas enfeitavam os regatos. Fotografou uma espécie de árvore que sobreviveu ao bombardeio atómico em Hiroshima na Segunda Guerra Mundial, a Hibakujyumoku. Sentou-se em um banco, perdeu-se ali e pensou no menino pobre que saíra de uma cidade pequena. O quanto tinha crescido. Estava feliz! Pediu a um visitante para fotografá-lo em uma ponte de madeira típica, e fez menção de agradecer, meneando a cabeça no registro. Saiu apenas no fechamento do parque, pegou um táxi e jantou no Pacífico, indo a seguir para o hotel.

Quinta seria o seu último dia. Pegou uma van de city tour e parou no famoso La Boca. Detestou o lugar, exceção feita ao La Bambonera, o campo do Boca Juniors. Dentro do estádio e do museu, até que se sentiu seguro, mas ao sair percebeu que, fora os vários gatos que passeavam nas calçadas (sim, ele gostava de gatos), aqueles barracões pintados com tintas das mais diversas empestavam o lugar com um clima de favela e isso fez com que empinasse o nariz e entendesse que sim, ele não era daquele lugar. Favela por favela, ficava no Brasil. E nem adiantou o guia explicar-lhe que El Caminito era uma das ruas mais famosas da capital, com artistas dos mais diferentes, pintores, músicos, escritores, ao que ele respondeu solenemente: “Rua que está impregnada de creolina para combater o cheiro de mijo, fezes e suor. Que horror!”. O guia riu, deixou passar, e ficou feliz quando o nosso visitante fez questão de agradecer, pegar um táxi e se despedir do tour ali mesmo, intentando visitar um clube mais rico, não à toa os seus torcedores eram chamados de “milionários”: o River Plate. Encantou-se com o estádio, o bairro, as largas avenidas arborizadas e os parques, cada um mais belo que o outro. Outro táxi e a seguir o famoso Teatro Colón, no centro da cidade. Pagou visita guiada, maravilhou-se com o espaço (também não era para menos), ouviu o guia dizer que a única reclamação feita ao lugar fora feita pelo grande Pavarotti, que explicou: “Por todos os lugares em que já cantei, quando erramos uma entonação, fica-se o público a imaginar se, de repente, não é a acústica do espaço que proporciona isso. Por vezes, a acústica do lugar encobre alguns deslizes nossos. Não é o caso do Teatro Colón, aqui a acústica é perfeita, límpida, cristalina. Uma acústica que não permite erros”. O guia fez questão de gritar em alguns espaços, para que os visitantes pudessem ter noção dos ecos e da ressonância do lugar. Ali não se tratava de megalomania dos portenhos. Nico percebeu que o espaço merecia os créditos. Fotografou o busto a Beethoven, a abóbada e as pilastras ornamentadas, os lustres magníficos e visitou as galerias e camarotes. Saiu dali, passeou, dirigiu-se ao Tortoni para almoçar/jantar e se despedir da capital argentina. Chegou ao hotel, tomou um banho de banheira e, a seguir, acessou sua rede social. Enquanto fazia o check out e se dirigia ao aeroporto para a viagem das quatro e meia da manhã, decidiu que não divulgaria aquela viagem. Ficaria apenas para si. Não precisava mais convencer a todo o mundo de suas mentiras. Já na aeronave, reviu as mais de seiscentas fotos, lembrou-se já com saudades de tantas coisas belas vistas nos últimos cinco dias e percebeu que, para ser feliz, não precisava parecer ser. Tinha apenas que ser.

Ludwig van Beethoven

Chegou a Belo Horizonte feliz. Um ano novo se avizinhava com esperanças, mudança de postura e já na segunda iria providenciar o seu passaporte. Assim o fez e, a seguir rumou para a cidadezinha do interior. Presenteou a mãe com uma caneca da Argentina e, para os seus irmãos, dois presentes: uma camisa da seleção argentina oficial, a 10 do Messi, e um livro ilustrado com fotos de Buenos Aires. Sua mãe ficou encantada com a caneca, mostrou às comadres e levou ao padre para que ele a benzesse. Espalhou-se rapidamente que Nico estava visitando a família e a diretora de uma escola municipal o convidou, para quando voltassem as aulas, para que ele fosse dar palestra na escola. Perguntado sobre qual seria o tema, a diretora explicou que ele era um exemplo de superação, um garoto que frequentara a mesma escola e que viajava o mundo inteiro. Seria uma inspiração para os demais. Nico recusou, por motivos óbvios: é que no período escolar ele estaria lecionando no cursinho. Mas agradeceu e se deu por satisfeito. 

Quando retornou a Belo Horizonte, foi convidado a escrever as impressões da capital argentina por um aluno seu que era estagiário de uma revista de guias de viagens.  Lembrou-se que tinha anotado algumas coisas esparsas, lembrou-se de memória de outras e submeteu-se às correções ortográficas e gramaticais de Gregório, sendo essa também uma feliz oportunidade de fazer as pazes com o professor e se desculpar pelo desaforado xingamento. Nico fez um belíssimo e breve texto (questão de limitação de espaço da coluna), atrapalhou-se com os dias passados em Buenos Aires e foi com felicidade genuína que viu ser publicado o seguinte roteiro:

Impressões de um Brasileiro em Buenos Aires

Nico Fidélis

Escrevo este texto no calor da emoção. Começo de manhã na cidade de Buenos Aires, no hotel NH Florida, na Rua San Martín, centro. Fugindo dos roteiros tradicionais que indicam visitar cemitérios (xô, tô fora!) e outros points, bem, curto mais ir além e me perder por aí, batendo pernas e me enfronhando mais no contato com o povo do país. Sem lenço e sem documento, adentro a Avenida Córdoba. Logo de cara já visualizo a arquitetura estilo europeia da cidade, acrescida de parques bastante arborizados. Cada paisagem mais linda que a outra! Caminhei por toda a extensão do Puerto Madero e, como era bem de manhã, os restaurantes que ficam na lateral estavam fechados ainda, mas só pelo aspeto já dava para saber que eram bons. Voltaria ali. Percorri toda a extensão do Puerto, tirei bastante fotos e vi com alegria um monumento elegante: a Puente de la Mujer bem ali nas docas. Caminhei mais um pouco e eu embasbacado com os prédios, num misto de antigo e moderno. As ruas de Buenos Aires são muito limpas. Num dos jardins, a imponente estátua de Juan Domingo Perón, uma espécie de lula deles (ex-presidente, populista, esposo de Evita e que cunhou um termo, não sei se é pejorativo, peronismo).

Curti a Casa Rosada, o Palácio do Planalto deles. Bem ali em frente, a Plaza de Mayo e o imponente Banco de La Nación (nunca tive tanto prazer em entrar em um banco). Funciona como um banco comum; o interessante foi ter entrado para ficar olhando o teto e com o queixo na mão para não babar. Refresco no ar condicionado, retornei para o calor de 30.º e adentrei a elegante Calle 25 de Mayo. Parei para um chope e logo estávamos batendo pernas novamente. Visualizei o obelisco gigantesco da Avenida 9 de Julho e tirei tantas outras fotos. Dali percebi que estava quase na Avenida Córdoba, mas, se existe a dificuldade, para que criar a facilidade? Propus-me retornar aos mesmos pontos, pois intentava almoçar em Puerto Madero, e “pernas pra que te quero”. Uma parada estratégica para uma cervejinha e, depois de duas horas, estava me refestelando com o vento no cais. Hora do almoço, ia provar o tão famoso bife argentino. Olha, pessoal, a carne bovina argentina é maravilhosa! Tem cortes especiais e a se dizer que se come muito bem na capital portenha (com entradas, sobremesas e bebidas, relativamente baratas). Meu restaurante foi o Cabaña Villegas. Indico. Depois dessa maratona deu-se o retorno ao hotel. Estava moído.

No dia seguinte contratei um city tour. Passamos pela Recoleta, Palermo (impressionante os seus jardins), Avenida 9 de Julho, Plaza de Mayo e aí sim visitamos dois lugares inéditos: San Telmo e La Boca. Aí se deu o meu desgosto: fora o mítico estádio La Bambonera, do clube mais popular do país, o Boca Juniors, o entorno é uma favela danada. Quando forem viajar, e no caso de mulheres que não curtem futebol, sugiro a não ida. El Caminito, nunca visitei rua tão esquisita. Minha única alegria lá, fora o La Bambonera, foi ter encontrado gatos em profusão. Cheguei inclusive a acarinhar um branquinho todo folgado. Ao fim do city tour, parei novamente em Puerto Madero e almocei no Brasas Argentinas. Experimentei o chouriço, não tem nada a ver com o nosso chouriço, antes é um bife bastante suculento. Aliás, a carne argentina é temperada apenas com sal, não precisa de outros condimentos para dar gosto e nem se usa panelas de pressão. Sinceramente, em matéria de carne os hermanos vivem muito bem. Um detalhe interessante: argentino come muita massa. Mas pouco arroz e feijão.

Findo este texto devido ao espaço limitado. Afinal, terei mais dois dias e o roteiro é se perder por aí, com quatro roteiros obrigatórios: o Teatro Cólon, o Jardim Japonês, o Café Tortoni e as livrarias. Minha câmara está trabalhando muito: são mais de 600 fotos. Haja bateria e cartão de memória. Fica a sugestão para conhecerem Buenos Aires. As dicas primeiras para os brasileiros são: os táxis são muito baratos e eficientes, as casas de câmbio oficiais são as mais seguras, evitem city tours contratados via agência de viagem (eles vão oferecer o básico e te levarem ao El Caminito, cruzes!) e exercitem o idioma conversando muito. Os argentinos são muito bem humorados, simpáticos e comunicativos. Ah, e para os homens, e só para ver e observarem mesmo, as mulheres argentinas são finas e elegantes. Muy bela Buenos Aires!

Marcelo Pereira Rodrigues

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