“Mesmo tendo sido insultado, ferido, sangrado em alguma parte, não exprimia abertamente o seu rancor, não chorava a sua dor, mas guardava-a no seu coração, traduzindo-a em delicadas ou mesmo ferinas observações.”
“O Planeta do Sr. Sammler”
Ao limpar a minha biblioteca, ou pelo menos uma das suas estantes, deparei-me com um livro na área dos não lidos. “O Planeta do Sr. Sammler” (Editora Victor Civita, 1982, 302 páginas), de Saul Bellow. O engraçado é que identifiquei o autor com um trecho do filme “Monsieur & Madame Adelman“, quando os pais da protagonista citam autores judeus e os exaltam devido ao acréscimo de humor ao ingrediente costumeiro de outros escritores, que é claro a inteligência. Limpei o livro, peguei-o e li a orelha. Soube que o autor havia ganho o Nobel de Literatura em 1976 e pronto, estava ansioso por conhecer mais uma história.
O livro é um romance centrado na vida de Arthur Sammler, um judeu na casa dos setenta anos que tendo escapado da execução na Segunda Guerra Mundial, saindo da cova à qual havia sido atirado, tendo perdido um olho devido a uma coronhada, encontra-se em Nova Iorque nos idos de 1970 convivendo com toda a marginália da cidade, aspetos que não se mostram a turistas desavisados.

Ele já percebe o modus operandi do ladrão negro que mais se assemelha a um príncipe africano no seu ofício de bater carteiras. O pior é quando numa dessas observações no autocarro ele é percebido pelo negro que o persegue e ameaça, na entrada do seu prédio, sacando não uma arma, mas o seu avantajado pénis como se aquilo fosse um testemunho de poder. Melhor esquecer o preto!
Sammler é pai de Shula-Slawa, uma quarentona que apanhava do marido e ambos estão agora separados. Na vidinha comum do pai, percebe-se a sua enorme erudição, mas ele mesmo sabe que aquilo não lhe servirá de nada. O desencanto está em toda a sua forma de ver o mundo. Percebe isso ao ser recrutado pelo oportunista gordo e fanfarrão Feffer para uma preleção na universidade, sendo que é destratado e praticamente escorraçado do auditório por não ter enfrentado um “louco de palestra”.
Fã dos escritos fantásticos e científicos de H. G. Wells, recebe um manuscrito do pesquisador indiano Dr. Govinda Lal que lhe fora surripiado pela filha, sendo que o mesmo só tinha aquela cópia. O pai indispõe-se com a filha e são feitos os arranjos para a devolução do original. Neste ponto do romance descrevo um senão que deixa a desejar. Nos diálogos intelectualizados entre o Sr. Sammler e Govinda, por vezes o primeiro esquece-se que está a conversar e pronuncia verdadeiros monólogos. Passados para o livro, todos sabemos que a não ser em palestras, ninguém conversa com outra pessoa durante dez minutos seguidos, sem que haja uma interrupção. Mas são detalhes técnicos que não desabonam a obra.

Outro núcleo do romance dá-se com o médico-cirurgião Dr. Elya Gruner, sobrinho de Sammler e que sustenta o tio. O cirurgião é abonado financeiramente e possui até uma limousine que o leva ao trabalho, mas isso de pouco lhe servirá, uma vez que está internado num hospital após um aneurisma e está apenas a contar as horas para a sua morte. Os seus filhos, dois doidivanas incríveis, Wallace e Angela, só lhe dão dores de cabeça, mas o comportamento excêntrico do filho é que proporciona as maiores gargalhadas do livro. Leiam esta descrição feita pela sua irmã:
“Wallace sempre foi tamanha dor de cabeça para ele! Aos seis ou sete anos era um menino bonitinho e tão inteligente! Juntava e rejuntava brinquedos matemáticos. Pensávamos que seria um outro Einstein. O Pai mandou-o para o MIT. Mas logo de seguida ficamos a saber que se tornara garçom em Cambridge, tendo surrado alguns bêbados até quase matá-los.“
E isso é só o começo. Todas as vezes em que Wallace aparecia na história eram reservadas as cenas de humor. Excelente, embora eu preferisse não me encontrar com pessoas assim.
No núcleo por vezes abrangente do Sr. Sammler percebemos que existe um estreitamento e mesmo uma sábia compreensão de que nada disso vale à pena, é como se ele com as suas digressões preferisse estar no mundo da lua, e já estudava H. G. Wells não à toa. Então com o Dr. Govinda, quase chegou a encontrar um par que compreendesse as coisas que ele compreendia.
Romance rico com muitas citações filosóficas, que vão desde Santo Agostinho a Platão, passando por Rousseau e Schopenhauer, o certo é que a erudição presente é pano de fundo para essa análise familiar das relações conturbadas do nosso protagonista, sendo que a pergunta aventada no título verifica-se no clã judeu que se ampara junto, e acerca da temática, por vezes alguns autores judeus podem cair na narrativa panfletária de um povo perseguido.
Certamente o foi, não questiono isso, e que sirva de alerta também para o não estrangulamento hoje da Palestina, mas como característica ímpar e que se sobressai, a inteligência de Saul Bellow é merecedora do prémio que conquistou e fiquei com muita vontade de ler outros autores mencionados, na tentativa de encontrar um bom humor em dias por vezes tão cinzentos. Um bom livro!
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