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Filmes sobre escritores costumam ser muito clichés, e aqui posso enumerar diversas ações: bloqueio criativo; o fracasso vindo a seguir à consagração final; a eterna luta do agente ou agente literária cobrando prazos ao escritor; o isolamento social para se escrever uma obra e se fosse aqui desfiar, enumeraria diversas outras. Desta forma, sentei-me para assistir a “Monsieur & Madame Adelman” mais como passatempo e nem vislumbrei a possibilidade de escrever uma resenha. Contudo, a película surpreendeu-me positivamente.

Realizado por Nicolas Bedos, com atuação deste no papel principal, na companhia de Doria Tillier, Denis Podalydès e Antoine Gouy, este é uma produção francesa com duração exata de duas horas, sendo que a premissa aponta para o velório do escritor Victor Adelman e um biógrafo que vem ter uma entrevista com a finada esposa Sarah, de maneiras que naquelas duas horas somos levados ao início da década de 1970 com as reminiscências de Sarah.

Ela inicia a história a falar de como se apaixonou pelo fracassado escritor em início de carreira, tendo se encontrado num clube de dança ordinário em Paris. Ele meio bêbado leva-a para a cama, mas não consegue ter ereção. Consegue sim com que ela leia o seu manuscrito que fora negado, sendo a desajeitada moça uma estudante do curso de Letras. Na verdade, ela é que é intrometida ao rabiscar com a caneta algumas passagens e a sugerir correções.

Nicolas Bedos (Victor Adelman) e Doria Tillier (Sarah Adelman)

O início do romance é um anti-romance, com muitos desencontros, sendo que Sarah se insinua até para o irmão dele. Mas estava escrito que era para eles ficarem juntos, e assim o casamento aconteceu. No início do filme Victor está revoltado com o prémio Goncourt (a mais importante honraria literária francesa) concedido a Patrick Modiano, chamando-o de idiota. Aqui uma ponte com a realidade. Recentemente Modiano venceu o Nobel de Literatura.

Mas voltemos à ficção: o casal tem um filho e é engraçada a cena que casa o momento do parto de Sarah com uma “trepada” do escritor com uma fã na casa-de-banho do hospital, sendo que os gemidos são sincronizados. A referir que os anos 70 eram bastante libertários em questão de sexo, e mesmo a esposa admite que sabia dos casos extraconjugais, mas chegou uma altura em que exigiu um basta.

O filho é problemático e cheio de manias estranhas. Mordeu um gato até sangrar, insinuou-se na escola para uma recatada serviçal e a peste não tem nem 10 anos. É o que basta para pai e mãe entenderem que estão diante de um imbecil, por mais que doa sentir isso do próprio filho. Um psicanalista revelou-lhes que a criança era maldosa, muito mais que idiota.

Antes disso, há uma conversão de Victor ao judaísmo, da qual a família de Sarah se encarrega de mostrar a rica biblioteca deles afirmando que o diferencial dos escritores judeus era que para além da sua inteligência havia o humor, e tenho que concordar com esse proselitismo. Uma troca de nome artístico e Victor Adelman consegue atenção nos media pelo seu estilo Philip Roth.

Adendo: a película abusa de referências literárias de altíssimo nível, tais Sartre, Camus, o próprio Roth, Modiano, Saul Bellow e muitos outros. O protagonista consegue o seu lugar ao sol e chega a receber o Goncourt, percorrendo uma extensa tournée para divulgar os seus livros. Há uma cena maravilhosa onde vários dos seus títulos são mostrados com a clássica capa da mais famosa editora francesa, a Gallimard, a casa editorial de Sartre e Camus.

Doria Tillier (Sarah Adelman) e Nicolas Bedos (Victor Adelman)

Acontece um salto vertiginoso do casal que morava muito mal e que agora reside num palacete, ela contratando os criados negros e enchendo a casa de cães. Sempre que o esposo volta das tournées, sente-se deslocado naquele ambiente e é chegada a hora de dizer basta a essas extravagâncias. Victor demonstra ser de caráter fraco, continuando a trair a esposa e expondo-a a constantes humilhações. Nem o nascimento da segunda criança ameniza a conturbada e desgastada relação.

O ocaso chega para Victor e ele sem nenhuma inspiração para escrever. Sarah parte para outra, mas tem uma recaída e volta para o seu amor. Por mais tumultuada que fosse, aquilo sim era uma relação de amor. Aos poucos, bastidores e segredos acerca da construção dos romances vão sendo esclarecidos e durante o tempo tomamos dois loops acerca desse entendimento.

Uma linha de tempo muito bem construída, atuações impecáveis e o processo de envelhecimento de Victor é notório e angustiante. Adulto, mas em muitas passagens com mentalidade de miúdo, tendo feito terapia a vida toda, é surreal a sua última visita ao psicanalista, que estava internado e nas últimas. O profissional sai com ele na cabeça pedindo para que ele se retirasse, pois ficara cansado de ouvir as suas baboseiras e lamúrias. O seu maior desejo era morrer em paz… e em silêncio. Uma cena Impagável!

Sarah havia começado a entrevista entendendo o motivo de muitos dizerem que ela havia matado o marido, mas o escritor biógrafo certamente entendeu que seria uma metáfora. O final da conversa é revelador e entendemos que o que acontece nos segredos de um casal devem ficar somente no domínio destes mesmos, pois para curiosos externos a chance de não compreenderem nada é muito grande.

Meio drama, meio comédia, meio romance, este filme é daqueles que nos enchem a retina e nos indicam que para além do simples diversionismo, existe muito conteúdo em certas obras de arte. O argumento foi desenvolvido pelo par romântico.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3.5 out of 4.

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One thought on ““Monsieur & Madame Adelman”: Em nada cliché

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