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O filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) nasceu em Genebra, na Suíça, mas viveu a maior parte da sua vida em França. Juntamente a Voltaire, Diderot e D’Alembert, é um dos expoentes do chamado Iluminismo francês, embora tenha desgarrado um pouco dos enciclopedistas e avançado em muitas das suas proposições. Devemos lembrar que a burguesia tentava desgarrar-se da monarquia absolutista e os iluministas propunham uma nova forma de ver o mundo e, no que toca à política, tanto em França como Inglaterra, alguns pensadores propuseram uma espécie de “contrato social”. Ou seja, como os cidadãos se comportariam sem a tutela de um rei que mandava em tudo, semelhante a um Deus?

Rousseau foi um filósofo pedagogo, com ideias bem articuladas no seu escrito “Emílio, ou Da Educação” (uma obra que irei analisar em um futuro artigo). Este distancia-se um pouco do movimento racionalista predominante à época e evoca a importância dos sentimentos no que toca à vida. Afinal, a Europa de então impregnava-se ou do cartesianismo francês ou do empirismo britânico. Esse posicionamento acabou por distanciar Rousseau de outros filósofos, incluindo a sua análise sobre o “O Contrato Social” (outra obra que irei analisar em um futuro artigo).

Edição francesa de “O Contrato Social” 1762)

Por enquanto, irei deter-me sobre o livro “Discurso Sobre A Origem E Os Fundamentos Da Desigualdade Entre Os Homens“. Este trabalho Rousseau fê-lo para participar num concurso, e nele avança com a sua ideia do “bom selvagem”. Explica-nos Rousseau que a natureza do homem selvagem era boa e pura e que somente havia sido corrompida pela sociedade e pela vida nos emergentes grandes centros. Para um pensador, trata-se de uma abordagem nova e interessante. Voltaire indispôs-se com a linha de pensamento do amigo e troçou dele apresentando o personagem Cândido na novela “Cândido ou O Otimismo“. Faz dele uma espécie de bom selvagem de Rousseau, mas que é sobremaneira ingénuo e quase sempre passado para trás (traído ou enganado) nos negócios.

No livro de Rousseau supracitado, “O Discurso…”, faz loas ao povo de Genebra na apresentação e descreve os seus governantes e governados como se houvesse um paraíso na Terra. Antes de soar irónico, soa apenas como uma forma exagerada de elogiar situações, o que aqui no Brasil chamamos solenemente de “puxa-saco”. A sua análise sobre o bom selvagem é ampla e interessante e tem muito a dizer nos dias de hoje.

No século XXI, com a maioria a viver nos grandes centros urbanos, levamos uma vida atribulada e vale aquela máxima sartriana de que “o inferno são os outros”, observamos que alguns dos nossos conhecidos desejam fazer negócios connosco com demasiado proveito próprio, que somos açodados a todo o momento por cargas tributárias extorsivas, que devemos proteger as nossas propriedades de interesseiros e o temor de um futuro incerto nos pode levar à preocupação e depressão. Não preciso avançar muito na descrição deste cenário, pois acaba que é a vida de muitos que fazem parte desta roda viva. Leiam o que Rousseau analisou num dos trechos de seu “Discurso…”. Cito:

À nossa volta, vemos quase somente pessoas que se lamentam da sua existência, inúmeras até que dela se privam assim que podem, e o conjunto das leis divinas e humanas mal basta para deter essa desordem. Pergunto se algum dia se ouviu dizer que um selvagem em liberdade pensou em lamentar-se da vida e em querer morrer. Que se julgue, pois, com menos orgulho, de que lado está a verdadeira miséria.

Refletida na época atual, este “Discurso” evoca a questão da qualidade de vida e, se há muito deixamos de ser governados pelos monarcas, agora figuras apenas decorativas em alguns países, o certo é que os contratos propostos pelos nossos legisladores têm falhado em muitos momentos. E a vida em sociedade anda difícil para muitos. Mas não prego aqui um retorno às matas, como na comunidade caraíba analisada por Rousseau às margens do Rio Orinoco, na Venezuela. Imaginem um mundo sem Internet e sem a possibilidade de enviar este meu artigo para OBarrete. Não cheguemos a tanto.

Retrato do filósofo Jean-Jacques Rousseau

Uma das passagens do livro chamou-me bastante a atenção e evocou-me lembranças remotas, quando divulgaram a imagem de um homem morto nas areias de uma praia e as pessoas, seres sociáveis, passaram pelo corpo com frieza e indiferença. Isso acarretou discussões éticas a respeito e eu mesmo vigio-me para não ser indiferente à aproximação de um outro ser humano, pois, mesmo que eu não tenha naquele momento dinheiro para dar esmola a um pedinte, posso tranquilamente dirigir-lhe a palavra. Mesmo que não queira comprar as balas de goma vendidas no sinal, nem por isso preciso de me desfazer daquele meu semelhante que está a passar por uma situação delicada. Vamos à citação:

Um animal não passa sem inquietação ao lado de um animal morto da sua espécie; há até alguns que lhes dão uma espécie de sepultura, e os mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprime a impressão que tem do horrível espetáculo que o impressiona.

Acredito que tanta racionalidade tenha nublado o nosso sentimento. Mas como não podemos nem devemos retornar às matas, o desafio será sempre analisarmos a nossa conduta de vida com os nossos semelhantes e tentarmos não cair no egoísmo de quem se julga dono do pedaço pelo facto de ter demarcado um terreno. Findo com a provocação de Rousseau acerca da delimitação de um pedaço de terra que, a título de propriedade, significa roubo. Mas isso aventarei na análise sobre “O Contrato Social”.

Rousseau é por vezes julgado pelo homem contraditório que foi. Pois, da mesma maneira que escreveu “Emílio”, deixou solenemente os seus filhos num orfanato por dificuldades financeiras. Adviria daí a sua perceção de que a sociedade e o seio familiar tradicional não tinham dado resultado? Ou certamente o pensador queria a liberdade para viajar e investigar as relações humanas à luz da sua filosofia? Isso parece certo.

Um filósofo instigante e que tem muito a dizer-nos ainda nos dias atuais.

Marcelo Pereira Rodrigues

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