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“Hable con Ella” (2002) – em português, “Fala com Ela” – conta a história de Benigno (Javier Cámara), um enfermeiro que se apaixona por uma aluna de balé, Alicia (Leonor Watling). Ela, posteriormente, sofre um acidente gravíssimo, ficando em coma, e Benigno acaba por se tornar no seu enfermeiro. No hospital, ele conhece Marco (Darío Grandinetti), que também está a cuidar da mulher que ama, Lydia (Rosario Flores), também ela em coma. O filme é escrito e realizado por Pedro Almodóvar.

De facto, Almodóvar tem a capacidade de lidar com a complexidade da subjetividade do espectador, baralhando as dimensões da identidade. Num primeiro momento, o que acontece é que Lydia e Marco se envolvem romanticamente, e o primeiro ato da narrativa explora a relação que eles vão desenvolvendo, entre um jornalista e uma toureira. Já num momento posterior da história, as atenções voltam-se para a relação entre Alicia, uma bailarina bastante talentosa, e Benigno, um enfermeiro, cuja orientação sexual é ambígua.

Ele demonstra uma verdadeira fixação por Alicia, de tal forma que, pela janela da sua casa, consegue ver a academia de dança onde Alicia treina, e todos os dias faz questão de a observar. Benigno que cuidava a tempo integral da sua mãe, até esta falecer. Num ato onde até contraria a sua timidez, Benigno decide falar com Alicia pela primeira vez. Mas ela sofre, pouco tempo depois, um grave acidente e fica em coma. Vai, depois, parar ao Hospital onde Benigno trabalha, o mesmo onde Lydia está a ser tratada.

Benigno (Javier Cámara) e Alicia (Leonor Watling)

Efetivamente, Benigno é bastante carinhoso com Alicia e, neste momento da narrativa, no qual Benigno está a tratar desta última, podemos fazer uma espécie de leitura freudiana implícita por parte de Almodóvar, uma vez que vemos a relação de total comprometimento de Benigno com a sua mãe replicada em Alicia, desenvolvendo ele um sentimento puramente platónico para com ela. Além disso, temos aqui também uma dualidade entre as nossas protagonistas em coma: a tourada vs. o balé, na medida em que há uma beleza rítmica, um mimetismo e uma analogia associados a estas artes performativas.

Por outro lado, e aqui vemos a riqueza em matéria de metáforas por parte de Almodóvar, Benigno carrega consigo, através do seu nome, a beleza e a riqueza da sua essência: bondoso e carinhoso. E é, sobretudo, através dele, através da sua sensibilidade, que o espectador é capaz de se agarrar, sentimentalmente, à obra: ele é, no fundo, a âncora emocional da narrativa. Neste sentido, o argumento do filme revela-se humanamente profundo e suficientemente complexo para conseguirmos fazer uma leitura subliminar e extrair significados maiores da narrativa per si. Além disso, formalmente, o cineasta espanhol, à parte de todas as questões sociais em que toca, revela-se como sendo um dos realizadores mais distintivos, através da sua estética sublime.

Através de um plot inusitado, Pedro Almodóvar, consegue, mais uma vez, trazer-nos uma narrativa extraordinária do início ao fim, mostrando e enaltecendo o valor das mulheres, que é um dos maiores destaques do cinema do realizador. De facto, Almodóvar tem um estilo tão próprio, tão rico, tão hipnotizante, que faz com que a viagem cinematográfica pela qual embarcamos seja quase como estarmos perante um museu dele próprio, imortalizado ao longo do filme com várias pinturas.

Benigno (Javier Cámara) e Marco (Darío Grandinetti)

Ainda assim, história após história, filme após filme, Almodóvar consegue transmitir coisas novas, poderosas e profundas. “Hable com Ella” é, portanto, muito mais do que voltar a pegar numa fórmula antiga, mas é sim reinventar uma fórmula, que é algo que se afirma, no meio artístico, como possivelmente o maior desafio que um artista atravessa: nomeadamente, não se conformar e tentar sempre evoluir.

No final, Marco e Benigno tornam-se grandes amigos, num filme onde temos a possibilidade de abraçar a demonstração de um profundo conhecimento psicológico e existencial das contradições e paradoxos da natureza humana. Tal como Marco desabafa a meio da narrativa, “Não há pior do que te separares de alguém que ainda amas. O amor é a coisa mais triste do mundo quando acaba“. No final de “Hable com Ella”, sentimos precisamente este vazio, aquele que nos acompanha ao longo da nossa vida e do qual só nos conseguimos libertar desabafando connosco próprios.

Por um cinema feliz.

Tiago Ferreira

Rating: 3 out of 4.

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