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Porque A Arte Somos Nós

‘Santo Deus! Em que me transformei? Que direito têm vocês de atrapalhar a minha vida, roubar o meu tempo, sondar a minha alma, sugar os meus pensamentos, ter-me como seu companheiro, confidente e departamento de informações? Por quem me tomam? Sou um artista assalariado, obrigado a interpretar toda noite uma farsa intelectual sob seus estúpidos narizes? Sou um escravo, comprado e pago para rastejar sobre a barriga diante de vocês, ociosos, e depor a seus pés tudo quanto faço e tudo quanto sei? Sou meretriz num hotel, chamada a erguer a saia ou tirar a combinação ao aceno do primeiro homem de terno feito que chegue?

Trecho do livro “Trópico de Câncer”, de Henry Miller

O que à primeira vista pode parecer contraditório, quando uma coisa descartável pode ser excelente, é explicado pela sensação diferente de tudo que tive ao ler esta obra. Com as suas 286 páginas da Biblioteca Folha, o romance entrecortado em forma de capítulos breves que mais se assemelham a um diário leva-nos pelas mãos a conhecer Paris da década de 1930, mas não uma Cidade Luz e romanceada por beleza e amores, mas sim uma cidade underground que é habitada por gente pobre, que vive na periferia e nas piores condições de higiene possíveis.

O nosso herói (ou melhor dizendo, anti-herói) narra as suas desventuras e o seu estilo de vida sórdido num linguajar cru e direto. Miller saíra de bom grado dos Estados Unidos, deixando casa, esposa, o seu emprego de revisor num jornal e cheio do puritanismo sufocante da religiosidade mais tacanha observada, nos hábitos e costumes. Mudou-se para a capital de França sem um puto no bolso.

Bom conversador, arrumava-se aqui e ali, recebia ainda um dinheirinho da esposa que ficara e era espartano nas despesas. Comia mal e uma vez por outra bebia algumas bebida alcoólicas e fodia uma prostituta. Escrevo fodia para dar o tom do estilo ejaculatório dele. Se eu escrevesse aqui “fazia amor” soaria ridículo. Se escrevesse “transava”, ficaria leve demais. Peço desculpa a alguma provável leitora puritana portuguesa por escrever fodia.

As suas perambulações por Paris são engraçadíssimas, indo muito além do malfadado epíteto que leitores apressados reservam ao livro, como sendo uma obra pornográfica e suja. Está bem, existe sim, mas reduzir a isso é perder o todo da sua complexidade. Para certos livros, é necessário um tempo para digerirmos a sua escrita.

O escritor norte-americano Henry Miller

Na página final fiz uma anotação a caneta: “Excelente! Terminei de lê-lo em 01/02/2014”. Vocês poderão perguntar: “Mas qual o motivo deste retardado escrevinhador ter demorado tanto tempo para escrever sobre?”. Explico. Após lê-lo, deixei-o na estante e, recentemente, peguei-o ao acaso. Num primeiro momento, não me lembrei de nada de importante da obra, mas lendo apenas as minhas marcações senti reavivar o sentimento prazeroso de ter conhecido a literatura do sujeito. Em passagens cruas como esta:

Mas Elza já me está enfraquecendo. Aquele sangue alemão. Aquelas canções melancólicas. Descendo a escada esta manhã, com o cheiro do café fresco nas narinas, eu cantarolava suavemente… ‘Eswaer’so schoen gewesen’. Isso para o desjejum. E pouco depois o rapaz lá em cima com o seu Bach. Como diz Elza, ‘ele está a precisar de uma mulher’. E Elza também está a precisar de alguma coisa. Posso sentir isso. Nada digo a Bóris, mas enquanto ele lavava os dentes esta manhã, Elza ouvia-me atenciosamente a falar sobre Berlim, sobre as mulheres que parecem tão atraentes por trás, mas, quando se viram, – ufa, sífilis!

Esse estilo escrachado dá o tom do livro todo. Interessante a perceção do autor de que não estava mais interessado em escrever literatura, pois tudo o que pretendia era expor os seus sentimentos sem ordens cronológicas e tudo isso é verificável. Certos preconceitos e ‘xingamentos’ devem ser colocados à conta da época, mas certamente caberão críticas do exército do politicamente correto, que tudo patrulha nos dias atuais, tais:

… a esposa de Serge, que é uma preguiçosa cadela arménia, deixa-se cair no sofá e começa a mordiscar bombons. Pesca na caixa com os seus dedos gordos, morde um minúsculo pedaço para ver se há algum suco dentro e depois atira-o ao chão para os cães.

Rip Torn e Ellen Burstyn na adaptação cinematográfica de “Trópico de Câncer”, realizada por Joseph Strick em 1970

E também:

Onde haja dez hindus juntos está a Índia com as suas seitas e os seus cismas, os seus antagonismos raciais, linguísticos, religiosos e políticos. Na pessoa de Gandhi estão a experimentar por um breve momento o milagre da unidade, mas quando ele partir haverá um choque, uma recaída completa naquela luta e naquele caos tão característicos do povo indiano.

Como viveu em quartos minúsculos e sujos, reclamava não do catre em que dormia, mas em muitos casos por uma mesa e uma cadeira para transcrever as suas ideias, notadamente com as lembranças dos sucessivos encontros na rua. Tudo era combustível para o seu diário: o dinheiro gasto com a puta da esquina, um café com croissant oferecido por um colega e o seu ignaro trabalho de revisor numa editora.

Vivendo e sobretudo sobrevivendo, escreveu com o próprio sangue, remetendo-me por vezes a um tresloucado Marquês de Sade (1740-1814), a um irónico e quebrador das regras sociais estabelecidas Oscar Wilde (1854-1900) e análogo na intenção de escrever com sangue de um Friedrich Nietzsche (1844-1900). Adendo: 1900 foi um ano triste, a humanidade perdeu dois dos seus génios.

Mas retomando: convido à leitura de “Trópico de Câncer” pela fluidez, pelo fluxo de consciência, pela verborragia desbocada e se no fim entenderem que nada depreendeu disso tudo, que não ficou nenhuma mensagem subliminar e de superação, lembrem-se do enunciado do autor que se estava pouco fodendo para as mensagens grandiloquentes. Ele apenas queria escrever e pronto, escreveu. A minha experiência de retorno ao livro foi valiosa, lembrei-me da vez em que perambulei por Paris, mas numa situação melhor do que o nosso bravo Miller.

Nunca vi um lugar como Paris para variedades de alimento sexual. Assim que a mulher perde um dente da frente, um olho ou uma perna, cai na farra. Na América, morreria de fome se não tivesse outra coisa a recomendá-la além de uma mutilação. Aqui é diferente. A falta de um dente, um nariz comido ou um útero caído, qualquer infortúnio que agrave a feiura natural da fêmea, parece ser considerado como condimento, um estimulante para o esgotado apetite do macho.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3 out of 4.

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