Você é escritor? Tem a chama acesa dentro de ti? Morreria se não se conseguisse expressar? Se estivesse trancafiado, sem notebook, smartphone, caderno, bloco de papel, caneta, lápis, pena, tinta, e mesmo assim, tivesse necessidade de escrever, o que faria? Pensaria em mutilar partes do próprio corpo com um pedaço de vidro, de modo a fazer do sangue tinta para escrever? Sinto muito dizer-vos, se não aceitasse este sacrifício, não és um escritor. É um impostor apenas.
Marquês de Sade nasceu Donatien Alphonse-François, no ano de 1740 e morreu no sanatório psiquiátrico em 1814, em França. De família rica e com títulos, os pais já pressentiam que teriam enormes dificuldades para controlar o endiabrado menino. Birrento e em muitos casos perverso, impunha maldades e constrangimentos aos seus amiguinhos e tornou-se incorrigível com o passar do tempo. Escritor e polemista, filósofo da alcova, passou a escrever peças que indignaram grande parte da população do seu país, pela ausência completa de filtros nos seus textos.
Pornografia, incesto, estupro (incluindo menores), zoofilia, indignidades de fazer um camelo vomitar, Sade passou dos limites de ser ousado e o foi. Os poderes constituídos não viram outra forma de conter o Louco: prisão na Bastilha e é de lá que ele consegue despachar muitos dos seus escritos, que são publicados na surdina e conseguem excelente repercussão entre o populacho, e para ser honesto, também com a classe dos mandatários. Passou 30 anos detido.

Dele, li “O Marido Complacente” (L&PM Pocket, 219 p.). Um linguajar cru, de fácil entendimento, em mini-contos que exacerbam as nuances do prazer e que ridicularizam ao mesmo tempo figuras da alta sociedade, quando iguala um magistrado a um asno, por exemplo. No conto “Talião“, refere-se assim a um homem de Deus: “Havia na cidade um certo vigário de paróquia, o abade de Bosquet, garotão de uns trinta anos, correndo atrás de todas as mulheres e criando de facto um bosque nas testas dos maridos de São Quintino“. No conto “O Corno de Si Mesmo ou A Conciliação Inesperada“, filosofa: “O salzinho do adultério valoriza não raro o prazer“.
Em “O Marido Padre – Conto Provençal“, um monge se insinua e assedia uma mulher: “Isso, boneca, sim, sim – segue o carmelita, derribando a sra. Rodin na cama -, fiz um padre do seu marido e, enquanto o patife celebra um mistério divino, nos apressemos em consumar um profano…“. A famosa expressão “uma santa na rua, uma puta na cama”, ao aludir à moral de algumas mulheres casadas, pode ser verificada na história de “A Pudica ou O Encontro Imprevisto“.
Observem se algumas mulheres não são assim na nossa vida real: “A sra. de Sernenval nada respondeu a isso, porque de facto a argumentação não tinha resposta, mas chorava, recurso comum de mulheres fracas, seduzidas ou falsas, e seu marido não ousou levar adiante o sermão“. Em “O Preceptor Filósofo“, um monge curra um garoto de 14 anos para lhe ensinar os mistérios da Santíssima Trindade, com a pica entre os seus rins.
Devo afirmar que este livro é bem mais palatável, uma vez que critica e escancara as hipocrisias da sociedade, mas nada de bizarro e escatológico é verificável aqui. Apenas os eclesiásticos não devem gostar dele, pois é notório que o autor escandaliza carregando nas tintas contra os moralistas, e quando faz estes de personagens, aí sim é deleite puro.

O grande livro dele, certamente, é “120 Dias de Sodoma“, que confesso não ter lido. Mas alguns detalhes são interessantes de comentar: ele só foi ajuntado em forma de livro para publicação no começo do século XX, uma vez que, em vida, seria impossível lançá-lo e, por mais conceptual que seja o slogan “liberdade de expressão”, é justo admitir que para tudo há limites. E até é interessante o facto de muitos dos escritos serem esparsos, afinal, lembremos que muitos deles foram feitos na prisão. Era uma conquista quando o escritor conseguia passar uma página para ser publicada, tudo clandestinamente, nas ruas de Paris. Publico aqui um release da edição da Companhia das Letras, a ver:
“Neste romance perturbador, pensado por Sade como a sua grande obra, quatro amigos se isolam num castelo na Floresta Negra para ouvir de quatro alcoviteiras histórias da sua vida nos bordéis e as taras dos seus clientes. Para encenarem esta experiência sadomasoquista da qual ninguém sairá imune, os libertinos contam com as esposas, filhas e um séquito de jovens, todos obrigados a se submeter às paixões ali descritas.
Escrito em 1785 durante uma temporada de prisão na Bastilha, este escandaloso relato permaneceria clandestino até 1904, ano da sua primeira publicação. Nem a perseguição do seu autor, nem a sua censura sistemática foram suficientes para conter a avassaladora influência que tal catálogo de perversões teve sobre incontáveis leitores ao longo dos dois séculos seguintes, entre eles Roland Barthes, Simone de Beauvoir, Theodor Adorno e Samuel Beckett.
Brilhantemente traduzida por Rosa Freire d’Aguiar, esta edição inclui um posfácio de Eliane Robert Moraes, que levanta uma questão mais do que pertinente: estaríamos nós, enfim, prontos para ler um dos livros mais controversos de todos os tempos?“
Há um filme, “Quills – As Penas do Desejo“, que assisti e que data de 2000, dirigido por Philip Kaufman com Geoffrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix e Michael Caine, que retrata os últimos anos de vida do Marquês. Uma reles lavadeira, interpretada por Winslet, tem acesso ao Marquês na prisão, no momento em que recolhe suas roupas. Ele aproveita-se da jovem e a seduz, para o seu jogo pervertido de interesses e sacanagens. Sabe que a moça agrada ao padre vivido por um bem-comportado Joaquin Phoenix e este sofre tentando converter o Diabo.
Na relação de forças, é Sade quem vai abalando o psicológico do padreco, brincando com a dicotomia deste acerca do desejo de santidade e de sentir as tentações do corpo. Pensa na lavadeira e sofre por isso. Tocante cena em que o Marquês se despe para ele, insinuando-se como uma víbora o tempo todo. Michael Caine é um médico que vem a mando do próprio Napoleão Bonaparte para dar um jeito no pervertido, mas a tarefa é pesada demais.

Retornando ao parágrafo inicial deste artigo: ficou marcado em mim uma passagem do filme, em que o Marquês de Sade mutila partes do corpo para obter sangue, uma vez que lhe foram caçados todos os instrumentos de escrita. Escreve nas paredes e quando lhe falta o sangue, escreve com as suas próprias fezes. Será que serviu de inspiração para o pensamento posterior de Friedrich Nietzsche (1844-1900) de que apenas respeitava aqueles que escreviam com o seu próprio sangue? Claro que o alemão, poético como ele só, fez uma metáfora.
Estudando para este artigo, soube que o filme “Salò ou os 120 Dias de Sodoma“, do realizador Pier Paolo Pasolini, de 1975, inspirado na obra matriz, é de doer o estômago. Se o filme já é maldito em si mesmo na sua proposta de violência sexual desmedida, o infortúnio veio colher o ateu, marxista e homossexual Pasolini, que foi assassinado a poucos dias antes da estreia. Ainda não assisti ao filme, e a bem da verdade sinto que irei declinar. Mas rendo uma homenagem ao editor do OBarrete, Diogo Passos, que é fã do cineasta. Prometo assistir outros filmes dele.
Em questões de sexo, existe a meu ver ainda um tabu muito grande entre as pessoas, tudo patrulhado pelas normas da sociedade auto-denominada “normal”. Padrões comportamentais e éticos ditam as regras de um falso moralismo e, na minha maneira de pensar, tenta impor a civilidade na nossa natureza que é bruta, animal. Penso que dentro do consentimento e da ideia de que entre quatro paredes tudo é permitido, pois bem, quem sabe não teríamos uma sociedade menos doente e intolerante que não vigia os seus próprios atos, mas se incomoda se um indivíduo A está tendo uma relação homossexual com um indivíduo B? As vidas não são deles?
No meu livro “Pimenta, Sal & Alho“, escrevi uma crónica intitulada “Eu quero sexo!“, mas devo esclarecer que perto de Sade sou cachorro pequeno. Mas voltando, vamos findar com mais uma provocação de Sade, uma até que lhe empresta a pecha de filósofo? Vai assim:
“A pior das loucuras é se envergonhar das propensões que recebemos da natureza. Zombar de qualquer um que tenha gostos particulares é tão bárbaro quanto gozar de um homem ou de uma mulher que saiu zarolho ou manco do seio materno. Contudo, persuadir desses razoáveis princípios aos tolos é tentar deter o curso dos astros. Há uma alegria egoísta em reprovar defeitos que a gente não tem, alegria tão doce ao homem, e em especial aos imbecis, que é raro que a ela renunciem…
Ademais, isso fornece maldades, frias frases brilhantes, trocadilhos chãos e, para o convívio social, isto é, para uma coleção de seres cujo vazio reúne e a estupidez anima, é tão ameno falar duas ou três horas sem ter dito nada, tão agradável brilhar a expensas alheias e anunciar, censurando, um vício que se está longe de possuir… É um elogio que se faz tacitamente a si mesmo e a esse preço se admite a união com outros e o complot para esmagar o indivíduo cujo erro é não pensar como o comum dos mortais. E vai-se para casa estufado pelo espírito que se demonstrou, quando de facto uma tal conduta não revela mais do que pedantismo e tolice“.
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Não, existe genialidade alguma em Sade, assim como não existe sadismo sadio, o Marquês deixa claro o que é o “Sadismo” e n critica absolutamente nada de sua época, sua literatura é sempre uma auto afirmação, de seu ateismo, de sua sexualidade, seus fetiches de viés homoafetivo diga se de passageme. Ele não se importa em mostrar o absurdo moral porque é exatamente que ele é. Sem falar de um ódio ferrenho a religião que fica latente em seus escritos. Mas algo se tira dele. Sade nos deixa explícito como o sexo desenfreado e a violência é ainda duas matérias que se complementam.