viva o rock brasileiro #25
Durante a ditadura militar no Brasil, e nas prisões políticas, era praxe dos oficiais descarregarem choques elétricos nas grávidas. Essa prática ignominiosa ao menos serviu para nomear uma banda juvenil de punk rock de Brasília, a capital insonsa do Brasil com as suas raras oportunidades de diversão. Década de 1980 e a ditadura estava a abrandar com a abertura e o processo de redemocratização que viria anos depois.
Já citadas aqui, as bandas Legião Urbana e Capital Inicial são herdeiras dos Aborto Elétrico. Uma curiosidade: comumente atribuímos aos vocalistas a liderança do conjunto, mas aqui sobressai-se com a sua discrição o baterista Fê Lemos, que se indispôs com Renato Russo (que viria a ser o grande poeta e líder da Legião). Dizem que o jovem Fê não aguentava as faltas e maneirismos de Renato. Flávio Lemos, o baixista, irmão de Fê, era outro dos integrantes. Mas o certo é que à época os Aborto não tiveram nenhum álbum lançado, mas as canções sobressaíram nos repertórios das suas duas herdeiras.

Para sanarem esta dívida, em 2005 os Capital Inicial lançaram o virulento “Aborto Elétrico”. Esqueçam baladinhas pop e românticas, o barulho das guitarras distorcidas e a voz gutural de Dinho Ouro Preto dão o tom na setlist que apresenta:
Tédio (com um T bem grande pra você)
Love Song One
Fátima
Helicópteros no Céu
Química
Ficção Científica
Conexão Amazônica
Submissa
Que País é Esse?
Beader-Meinhor Blues nº 1
Anúncio de Refrigerante
Heroína
Despertar dos Mortos
Veraneio Vascaína
Construção Civil
Geração Coca-Cola
Música Urbana
Benzina (instrumental)
Destas, o espólio gravado pelos Capital nos primórdios foram Fátima, Veraneio Vascaína e Música Urbana. Já a Legião gravou Tédio (com um T bem grande pra você), Química, Conexão Amazónica, Que País é Esse? e Geração Coca-Cola. Fica nítida a importância deste registo sobre os primórdios do Rock Brasil, o que nos anos vindouros significaria o boom nas rádios e nos media mainstream.
Exercício gostoso este o de escrever o texto com o som do CD no talo. Os tímpanos zunem com o barulho juvenil e bem proposto. Redondinha e ajustada, a banda com Dinho (vocal), Fê (bateria), Flávio (baixo) e Yves Passarell (guitarra) manda bem o recado.
Com hits e brados que se tornaram célebres, como na icónica Que País é Esse?, quando nos concertos o público brada solenemente “É a porra do Brasil“; na denúncia da polícia que mata, em Veraneio Vascaína, sendo os uniformes e as viaturas dos policiais militares cinza como as cores da famosa equipa de futebol do Rio de Janeiro, o Vasco da Gama; Fátima com os seus versos apocalípticos de Renato e no todo a coisa é muito boa.

Dentre todas, descreverei aqui a letra Despertar dos Mortos, com composição de Renato Russo e Flávio Lemos. Tristemente atual. Vai assim:
“Roubaram meu ouro
Roubaram meu sangue
Roubaram meus filhos
E querem mais…
Verde e amarelo, verde e amarelo, verde e amarelo
Desordem e regresso eu não aguento mais
A guerra acabou mas nós não temos paz
É sempre a gente que sofre mais
Você de esquerda, você de direita
São todos uns babacas e velhos demais
Vivendo intrigas de tempos atrás
Acabem com a merda e nos deixem em paz
Verde e amarelo, verde e amarelo, verde e amarelo
Menos guerra e mais pão
Golpe de estado é revolução
Fuga de rico é televisão
Fuga de pobre é religião
Roubaram o verde e amarelo também
Protejam o azul e o branco, alguém
Como roubar mais de quem nada tem!
Verde e Amarelo, verde e amarelo, verde e amarelo
Sobrou o céu
Um dia os mortos vão despertar“
O CD é um esmero com registos da época dos jovens integrantes dos Aborto e letras manuscritas e rascunhadas. Um disco memorável e revigorante para estes dias em que estamos com preguiça. Tipo colocar o dedo numa tomada de 220 volts.

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