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Num mundo de super-heróis, tanto os dos quadrinhos quanto os do cinema hollywoodiano, a moral da vingança travestida de justiça está sempre muito bem apresentada, de forma a satisfazer os nossos anseios mais comuns. Fazendo aqui um exercício de rememoração, de todos os males dos quais são vítimas as mulheres, com possibilidade de terminarem o filme ou o livro com o herói, o estupro nunca é sugerido quando ela fica à mercê. O vilão acaba desconsiderar o seu ato e quase sempre (ou sempre) a rapariga é salva pelo herói, provavelmente formando um par romântico no fim. Claro, devem haver raras exceções.

Nos últimos filmes do 007, os vilões acabam por descartar algumas namoradas do agente, mas de psicologia fria e racional, o certo é que o herói já descarta o romance como empecilho às suas importantes atividades. Segue o lema: uma conquista, uma trepadinha e nada mais.

Escrevo este preâmbulo para criticar a película brasileira “O Silêncio do Céu”. Com contribuições vizinhas do Uruguai e Argentina, sendo Montevidéu o centro da ação, participam no elenco os atores argentinos Leonardo Sbaraglia e Chino Darín. A bela Carolina Dieckmann, brasileira, é a atriz principal. O filme é inspirado no livro homónimo do argentino Sergio Bizzio, sendo que após os créditos finais reconheci o escritor de um romance muito bom que li, “Raiva” (Editora Record, 223 páginas), que também virou filme. Assinam o argumento deste “O Silêncio do Céu” Caetano Gotardo e Lucia Puenzo. Produzido por Rodrigo Teixeira e realizado por Marco Dutra, este encontra-se disponível na Netflix Brasil.

Carolina Dieckmann (Diana) e Leonardo Sbaraglia (Mario)

Diana é violada na sua própria casa e as cenas de sofrimento, mascarando-se logicamente as penetrações, são impactantes. Ameaçada com uma faca, tem a boca tapada e é seviciada por dois jardineiros que fazem dela “gato e sapato”. Mario, seu marido, chega a casa e ouve os ruídos, mas é acometido de uma paralisia que o faz não intervir de imediato. As cenas de estupro são repetidas, alternando-se o ponto de vista da vítima e do marido, provocando ao espectador mais sofrimento. Esse é o tipo de reação que imagino alguns seres humanos de carne e osso tentarem. Sempre existe o breve momento do catonismo.

Armado de uma tesoura, chega a correr atrás dos criminosos e é quando atende ao auxílio da mulher, pedindo para que ele vá buscar as crianças ao colégio, como se nada houvesse acontecido. Quando chega a casa, percebe que Diana guardou para si o estupro, e a partir daí iremos conhecer os medos dele que sempre se portara como um protegido da mulher. Medos e fobias. No seu intimismo e diálogo interno, ele discorre sobre os seus medos: avião, elevador, assaltante, raios e trovões, colisões, alturas, enfim, o cardápio é recheado. Ele é argumentista e escreve para a televisão, ela é dona de um atelier.

Após o trauma real sofrido, ele assume uma espécie de personagem de si mesmo e driblando todos os seus receios, irá investigar o paradeiro dos violadores. Cabe aqui um comentário acerca das localizações em Montevidéu, nesta cidade que gostei muito de ter conhecido, com as suas ruas charmosas e até os becos com o seu estilo característico. Mario consegue seguir um dos bandidos, chegando à floricultura em questão. Torna-se cliente e vai-se aproximando de Néstor.

Leonardo Sbaraglia (Mario)

A proprietária do estabelecimento, mãe de Néstor, acha estranho as reiteradas visitas deste cliente. Mas lembremos a característica notadamente “humana” do nosso herói. Para além de procurar vingança, o seu quotidiano vai sendo massacrado pela necessidade de terminar um trabalho com Trini (interpretado por Roberto Suarez), assim como os diálogos com a esposa que não abre o jogo e sofre em silêncio.

À medida que a película se desenvolve, estranhamos o facto de Néstor se aproximar ainda do atelier de Diana, e logicamente percebemos que a ação violenta não foi ao acaso e ocorreu sim uma premeditação, premeditação esta que contou com o irmão do jardineiro, um publicitário que teve uma relação com Diana enquanto esta estava separada de Mario. Quando ela o dispensou, ele revelou o seu lado bruto e afirmou que nenhuma mulher se havia livrado dele assim. A complexidade psicológica dela é apresentada, querendo ainda resguardar o marido.

O desfecho é convergente, Mario realiza uma verdadeira terapia na prática, atuando como se fosse um personagem de si mesmo. Fica apenas um senão para a cena final, onde os dois automóveis estacionam em frente à casa do casal, os cônjuges saem e põem-se a conversar. Este diálogo final seria desnecessário, a meu ver, até pelo facto de revelar que o fingimento entre ambos continuará e que certas verdades entre casais não devem ser ditas. Ele, que tinha receio de voar, e que supostamente estava a realizar sessões terapêuticas com um profissional, resolve abdicar de um importante trabalho em Madrid, e conta à esposa que o seu medo não era do avião, mas sim do céu.

Um filme dramático, chocante, com um enredo psicológico cativante e complexo, atuações seguras e de sobra um passeio pelas ruas de Montevidéu.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3 out of 4.

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