“Predestination”, ou em português “Predestinado” (2014) dá-nos uma experiência de outro mundo; literalmente, de outra realidade. Encontra na imprevisibilidade e em twists sólidos o apanágio narrativo, nunca deixando de nos trazer uma sensibilidade, um toque onde o passado, o presente e o futuro se complementam – e até se confundem. O filme pode ser divido em dois actos: o da contextualização e o do delírio. No meio, somos convidados para uma viagem sem fim pela nossa interioridade, pelos nossos medos, por aquilo que sentimos e vemos. Procura sempre confundir o lógico e dar um novo sentido cinematográfico, aliando-se a uma banda sonora edificante e absolutamente digna.
Este filme conta a história de um agente especial, preparado para a última missão da sua vida. O trabalho passa por lutar contra um bombista que tem gerado medo e celeuma pela cidade. O também empregado de mesa, interpretado por Ethan Hawke (conhecido por trabalhos como em “Gattaca“, 1997; na trilogia “Before“, 1995 a 2013; em “Boyhood: Momentos de Uma Vida“, 2014; e em “No Coração da Escuridão“, 2017), depara-se com um escritor no seu bar, com o pseudómino ‘The Unmarried Mother’. A partir daí, gera-se uma conversa interessante sobre o seu passado, espoletando o dito «motivo narrativo». Num momento inicial, há que dar ênfase à capacidade do argumento em contextualizar a vida do escritor, impulsionando o segundo acto.

A realização e argumento é dos irmãos Spierig, que se baseiam numa obra de Robert A. Heinlein, “All You Zombies“. De facto, o que há de mais bonito nesta produção é a sua vertente reflexiva, uma vez que nos faz questionar a nossa própria identidade, de onde viemos e para onde vamos, sem nunca, na verdade, encontrar uma resposta. É, precisamente, no obscuro de si mesmo que “Predestination” encontra o auge fílmico, o delírio cinematográfico onde todos estamos inseridos, mesmo que disso não tivéssemos noção.
Ou seja, o filme, todo ele, é verdadeiramente provocador, inesperado, gradativo e de uma audácia tremenda. Mas, onde ganha mesmo valor é na clareza com que estrutura a sua história, pois a sua duração imaterial alavanca um ritmo quase frenético de acontecimentos: subtis e, no entanto, tão eternos.
As relações com a obra “Looper – Reflexo Assassino” (2012) são imensamente estreitas. O facto de o Passado se tornar num conceito metafísico quase maleável, permite um retrato quase perfeito do que é o ser humano, como um todo. A nossa vida é uma junção infinita de momentos, e é a forma como os conectamos em nós que cria uma identidade. A obra segue, portanto, o lema «para salvar o futuro, temos de reformular o passado», mas consegue ser muito mais do que uma produção metafísica, proporcionando uma experiência inesquecível, interior e life-changing, diria eu. O que pressupõe outro ponto: em que medida podemos alterar aquilo que fomos? O filme dá uma resposta interessante.

Depois, vemos a questão do tempo inerente a Christopher Nolan, na sua importância sob diversas e múltiplas realidades, e o facto de cada um ter a sua concepção mais pessoal. O que é facto é que esta obra subjuga o espectador a uma metáfora única do ponto de vista formal. A viagem é verdadeiramente agradável, com sobressaltos mas todos eles consentidos. O que nos é exigido é uma atenção máxima, enquanto somos ludibriados pela arte cinematográfica per si, mas isto está longe de ser um engano, é simplesmente uma elevação; encontramos dentro de nós a catarse moral e pessoal que instantaneamente nos transporta para outra dimensão, onde a imprevisibilidade e a fugacidade inerente à vida permanecem de mãos dadas.
Em “Predestination” temos tudo para viajar pelo tempo, cientes de que a nossa realidade, dentro de muitas, passou a fazer mais sentido após a sua contemplação.
Por um cinema feliz.