Um dos principais objectivos de qualquer arte passa por encontrar um significado pessoal de expressão. Para isso, a linguagem serve para expressar o que está dentro de nós e, portanto, o cinema “puro”, aquele que contempla as emoções dentro das personagens, obedece a uma filosofia cinematográfica (a emoção): a comunicação não tem de ser vocal, pois o poeta é aquele que usa uma imagem para expressar uma mensagem universal.
Como tal, a estética cinematográfica como Arte – a expressão visual – tem na fotografia a base, porque por vezes as imagens são mais eficientes quando te fazem imergir sobre o mundo que espelham. Desta forma, se eu conseguir sentir visualmente a realidade, o mundo passa a ser instantaneamente táctil, isto é, “se parecer real, parecerá relevante”.
Assim, a harmonia poética, enquanto símbolo da intuição, realidade abstracta e consciência do Eu (de si mesmo), sobrepõe-se como uma lei (verdade) universal, precisamente no sentido da atmosfera que consegue criar e captar. Há, neste âmbito, uma frase do cineasta David Lynch que se enquadra muito bem: “I don’t know why people expect art to make sense when they accept the fact that life doesn’t make sense“. Deste modo, de acordo com uma narrativa niilista, nenhuma outra forma de arte é capaz de “concentrar” o tempo como o cinema faz. Ou seja, o cinema é, no fundo, um mosaico feito através do tempo.
No sentido de estudar esta relação (intersemiótica) tácita entre Cinema e Literatura, há, inegavelmente, um cineasta que sobressai: falamos de Andrei Tarkosvky. Para ele, “a arte simboliza o significado da nossa existência”, através de uma certa inércia do tempo, onde o tempo não é uma luz neutra a partir da qual as coisas acontecem, mas que obedece à seguinte ideia: “cria uma emoção e deixa a câmara exprimi-la”. Neste sentido, o dito materialismo cinematográfico transpõe um significado espiritual e narrativo, ou seja, uma certa densidade pré-narrativa, capaz de (tentar) mostrar o próprio tempo. Decerto, o chamado “esculpir no tempo” tarkosvkiano defende que a verdadeira característica do cinema passa por transmitir a nossa experiência de tempo e alterá-lo.


Por outro lado, o próprio defende a ideia aristotélica de um cinema que busca a verosimilhança. Isto é, propõe-se uma analogia do verdadeiro – algo que, sem ser real, seja credível –, um fazer-crer e, no fundo, a arte da ilusão. Logo, há uma relação de ficção com o mundo dos sentidos, que visa filmar “com a mão de Deus”, por outras palavras, a arte é o reflexo num espelho do gesto do criador, representando algo imaginário (que nesse momento, porventura, deixa de o ser), constituindo um dos momentos preciosos em que nos assemelhamos a Ele, transpondo, precisamente, enigmas do invisível e da ordem do sagrado.
Tarkovsky tinha uma obsessão completa pelas temáticas da inércia, densidade e decomposição da matéria. Por exemplo, nos seus filmes, sempre que as personagens estão a rezar, a reza não se faz para cima – como é mais natural – na procura e encontro de espírito com Deus, mas rezam dirigidos para baixo, na tentativa de estar em contacto profundo com a Terra e com a sua interioridade: ou seja, a ideia que se pode extrair a partir daqui é que o verdadeiro Deus está, de facto, dentro de nós – concretamente, no espelho de nós mesmos.
Desta forma, as imagens podem dividir-se em dois grupos: a memória, numa comparação curiosa do trabalho de um realizador ao trabalho de um escultor; e os sonhos, que visam incorporar o tempo e a memória como dois lados da mesma moeda. Ou seja, estas duas realidades perfazem um diálogo contínuo e expressivo entre o que se vê e o que se ouve (interiormente).

O que se cria, nesta medida, é uma introspecção, enquanto “observação da vida”, na medida em que, para o próprio cineasta, o que torna, de facto, uma criação cinematográfica única é, concretamente, a possibilidade que tem de ser, ou não, verosímil. Além disso, é apologista de um cinema capaz de, mais que um jogo de falas, ser um jogo de olhares.
Através do uso de espelhos no seu cinema, Tarkovsky sugere uma espécie de mergulho nas camadas mais profundas do nosso ego, procurando aprimorar, na essência das suas criações, um abordagem alegórica, numa procura incessante pela identidade, como reflexo ilusório de si. Filmes paradigmáticos nesse sentido é, obviamente, “O Espelho“, de 1975, no qual podemos ver uma ponte feroz entre o vivido e o narrado, numa magia pura de fragmentação, onde o sujeito tem uma percepção fictícia e imaginária do “eu”, e é isso que espoleta a narrativa de um modo mais apreciável.
Tarkovsky revela-se, por isso, como um dos cineastas mais brilhantes na arte da fragmentação do eu e, nesse sentido, presenteia-nos com uma obra intemporal e que merece ser vista e revista por um olhar atento, criativo e sui generis.
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