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Porque A Arte Somos Nós

Este trabalho foi-nos disponibilizado pelo artista Mauro Santos, o qual já tivemos o privilégio de entrevistar, no âmbito do Mestrado em História da Arte, Património e Cultura Visual, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

A morte de Sócrates

A um nível inicial devemos compreender ou ter ideia da imagem que nos é apresentada. “A Morte de Sócrates” é uma obra datada a 1787, feita a óleo sobre tela com 129 por 196cm de dimensões. As primeiras questões a ser abordadas são também as mais primárias e simples, estamos diante de uma obra de grandes dimensões cuja composição é destacada por uma primeira cena, desenhada através de linhas horizontais, e outra cena no plano de fundo, estudada e desenhada de acordo com a perspetiva e noções de volume do espaço.

Estas duas cenas parecem dialogar a partir da figura que gesticula um adeus para o espaço em primeiro plano. Ou será um gesto para nós, os espectadoras da obra? Este primeiro olhar não nos permite, contudo, saber se toda a obra é representada num único tempo ou espaço ou se teremos uma sobreposição dos dois. Deixaremos, portanto, esta análise para um momento posterior onde poderemos especular e analisar diferentes leituras desta obra.

Um único ponto de fuga cria esta composição que é também alimentada por um único foco de luz. A luz irá destacar as várias figuras presentes na ação que a obra apresenta: em primeiro plano encontramos dez personagens e no plano de fundo mais três personagens cujas identidades fazem parte de uma análise iconológica posterior.

As cores das roupas dos intervenientes, dos acessórios e dos elementos arquitetónicos entram em perfeita harmonia entres elas, apresentam-se cores terra como ocres, terracota, brancos e pequenos apontamentos de azul. Poderemos ainda referir o comportamento confuso das personagens: percebemos algum desespero, tristeza mas também alguma calma e passividade.

“A Morte de Sócrates”, por Jacques-Louis David (1787)

Estamos perante o que Panofsky chamaria de nível pré-iconográfico, a análise a partir da experiência e da educação a que somos sujeitos durante a nossa vida. [1] Assim temos de partir para uma análise mais aprofundada da obra. Para começar, levantamos algumas questões: Quem são estas personagens? Que ação está representada neste quadro?

[1] PANOFSKY: 1995

O título da obra é o primeiro elemento que nos permite compreender a cena representada bem como a cronologia onde esta se insere. Sem qualquer dúvida podemos identificar imediatamente o grande filósofo Sócrates no centro da obra, sentado numa cama e vestido de branco. Sabemos que esta personagem irá morrer nos momentos que procederiam esta cena, comprovado pela história. Sócrates encontra-se na cela em que irá morrer pela própria mão rodeado pelos seus discípulos/alunos e amigos mais próximos.

De facto, apenas temos conhecimento deste momento que é contado através dos diálogos de Platão, que não só nos fornece uma imagem sólida de Sócrates, seu mentor, mas principalmente das suas perspetivas e filosofias, bem como os seus últimos dias de vida. Assim, encontramos novas questões: Quem era Sócrates e os seus discípulos? E o que era Platão? Porque Jacques-Louis David pinta esta cena de 399 a.C. no século XVIII?

Como referido, Sócrates morre a 399 a.C. após o seu julgamento público em Atenas em que o resultado é a sua encarceração e execução. Para compreender este cenário, assim como as acusações que levam o filósofo a tribunal e julgamento público, devemos compreender de alguma forma a sua filosofia, convicções e modo de vida. A partir de vários escritores e filósofos da antiga civilização grega, seus contemporâneos como Platão, podemos compreender então os motores filosóficos da vida de Sócrates. Parece ter vivido sempre em pobreza monetária e livre de riquezas materiais, em forma de se enriquecer como humano portador dos seus próprios valores.

Sócrates está em julgamento por vários motivos, por não acreditar nos Deuses, por ensinar sobre outros seres divinos e consequentemente corromper os mais jovens. Num belo discurso, o filósofo como mestre da retórica, consegue refutar todas as acusações. Contudo, como sabemos, a opressão ao sábio começara e nada impediu o seu destino. Finalmente, consciente que o fim da sua vida se aproximava, Sócrates enunciou o seu último ensinamento (ou as suas últimas ideias): o filósofo não deve temer a morte. Através da conhecida “Apologia de Sócrates“, o filósofo afirma durante o seu julgamento:

“Seria, de facto, um procedimento estranho o meu, atenienses, se, depois de me ter mantido firme como qualquer soldado, afrontando a morte (…) abandonasse agora, por medo de morte ou do que quer que seja, o posto que me foi atribuído por um deus, renunciando à missão, conscientemente aceite, de viver filosofando, examinando-me a mim próprio e aos outros.

Seria estranho e legitimamente me poderiam trazer a este tribunal com a acusação de não acreditar nos deuses uma vez que obedecera ao oráculo por medo da morte, julgando ser sábio não o sendo. Efetivamente, temer a morte, atenienses, não é mais que julgar ser sábio, sem o ser, porque é imaginar que se sabe o que não se sabe. É que ninguém sabe o que é a morte nem se, por caso, ela será para o Homem o maior dos bens. Mas temem-na como se soubessem com segurança que é o maior dos males.” (PLATÃO)

São exatamente estas ideias que Sócrates explora no final da sua vida, antes e depois de ser encarcerado. Podemos totalmente ler o quadro de David através dos diálogos platónicos, encontramos as mesmas personagens e a mesma finalidade. Platão consegue, a partir de relatos de outros filósofos e amigos, reconstruir os últimos ensinamentos de Sócrates que se focavam em questões de justiça, valores do Homem e morte. Em “Fédon“, é-nos relatado o momento da morte de Sócrates onde estavam presentes, pelo menos, Apolodoro, Crito, Hermógenes, Epígenes e Antístenes.

Podemos identificar algumas destas personagens históricas no quadro de David: Crito é representado na figura sentada em frente a Sócrates, com a mão na sua perna como sinal de intimidade e proximidade entre mestre e aluno. A figura mais à direita, em desespero, seria Apolodoro, angustiado com o futuro de Sócrates. Também podemos identificar Xanthippe, mulher de Sócrates, a quem este pede para se retirar, como “Fedón” nos relata. Vemos Xanthippe a retirar-se, com outras duas personagens, enquanto gesticula um “adeus” com a mão em direção ao local onde se encontra o marido e em direção ao espectador.

Por último, imediatamente à esquerda de Sócrates encontramos um jovem que estaria encarregue de entregar o veneno num cálice ao filósofo. Sócrates aproxima calmamente a mão do cálice e, simultaneamente, olha para os seus discípulos com o outro braço no ar, com a mão fechada e o dedo indicador para cima. Este último gesto pode ser interpretado como momento de discurso, um gesto de afirmação e comunicação sobre algo importante.

Detalhe de “A Morte de Sócrates”, 1787

Encontramos um gesto peculiarmente parecido em “A Escola de Atenas” (1511) de Rafael: ao centro, ao lado de Aristóteles, encontramos Platão representado numa idade mais avançada em diálogo e com o braço na mesma posição que Sócrates no quadro de Jacques-Louis David. Isto não é uma surpresa pelo facto de sabermos que David, para além de pintor, era um conhecido da história e cultura da Antiguidade e do Renascimento. Era, portanto, um estudioso, rodeado de outros tantos.

“n’A morte de Sócrates a “ativação” do Logos não pode ser desvinculada da ação humana: o mestre que palestra e o discípulo que, com a pena e o tinteiro, encarrega-se de registrar suas palavras. Embora o Hades fosse percebido pelos gregos como um “mundo subterrâneo”, Sócrates aponta com o indicador da sua mão esquerda para o céu: fazendo uso da razão e do Logos ele conquistaria, com ajuda de Platão, a imortalidade reservada aos deuses olímpicos e celestes.” (ALMEIDA; 2016: 283)

Bibliografia

Burke, Edmund. (1790) Reflections on the revolution in France. Editora James Dodsley

Johns, Christopher M. S. (1998) Antonio Canova and the politics of patronage in revolutionary and Napoleonic Europe. University of California Press

Gombrich, E. H. (1950) – A história da arte. 16a Ed.. Lisboa, editora LTC

Herbert, Robert L., (1972) David, Voltaire, Brutus e a Revolução Francesa, Editora Allen Lane

Hauser, A. (1951) História social da arte e da literatura          

Panofsky, E. (1995) Estudos de Iconologia – Temas Humanísticos na Arte do Renascimento, Lisboa Editorial Estampa

Platão. Apologia de Sócrates – Críton – Fédon, Lisboa, editora Europa-América

The Metropolitan Museum of Art. Europe in the Age of Enlightenment and Revolution, vol. 7, Nova Iorque

Mauro Santos

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One thought on “Contextos sócio-políticos e filosóficos n’A morte de Sócrates de Jacques-Louis David (Parte 1)

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