Podem ler a primeira parte deste trabalho aqui!
Segundo “Fédon“, Platão não estaria presente no momento da morte de Sócrates por se encontrar doente. Porém, é através dele que conseguimos construir a imagem do filósofo encarcerado e a sua morte. Assim, Jacques-Louis David faz representar Platão sentado aos pés da cama onde Sócrates vive os seus últimos momentos. Platão é representado como o filósofo censurado, com um pano a tapar-lhe a boca. É curioso como as figuras de Sócrates e Platão se parecem fundir, não só visualmente, mas como duas personagens históricas em que uma não existiria sem a outra. Assim, Platão é um espelho ideológico de Sócrates.
Poderemos até mencionar as semelhanças físicas das duas personagens que se tornam quase anacrónicas neste quadro. Os seus panejamentos brancos e os seus traços físicos igualmente envelhecidos são duas características que os aproximam. Contudo, Platão encontra-se mais envelhecido e menos fortalecido comparado ao corpo rígido e musculado de Sócrates. Entendemos que a sua representação é a de um filósofo mais velho, quer isto dizer que, talvez, tenhamos duas linhas temporais que se cruzam nesta pintura: A morte de Sócrates e as memórias de Platão sobre este acontecimento. Se notarmos, a cena em primeiro plano, parece explodir da mente de Platão que, sentado em reflexão, nos elucida sobre este momento histórico.
Para além de inspirações da filosofia, o historiador de arte Robert L. Herbert, fala ocasionalmente, sobre outros artistas que devemos invocar ao falar de David: dois deles são Giotto e Poussin. O primeiro torna-se essencial para compreender a divisão de cenas, as do primeiro plano e as restantes. Para isso, Giotto usa elementos arquitetónicos para distanciar as cenas. Jacques-Louis David fá-lo em termos espaciais, num interior arquitetónico, e em termos temporais, como mencionado anteriormente. [2] A inspiração de Poussin é incontestável, não só para David mas também para os seus contemporâneos: o rigor anatómico, equilíbrio e perfeição na composição cuidadosamente delineada.
[2] HERBERT; 1972

É curioso questionar porque Jacques-Louis David pintou esta cena tão emblemática da história clássica. O panorama social e cultural onde o artista estava inserido seria de grande mudança, bem como um palco de crescentes movimentos ideológicos e artísticos. Assim, no século XVIII emerge o movimento intelectual do Iluminismo que irá convergir, momentaneamente, com o neoclassicismo e abrirá portas para delinear ideais do liberalismo. Este levantamento social é importante para entender os valores ideológicos e estéticos que Jacques-Louis David iria acolher.
Assim, David e os seus contemporâneos artistas são os responsáveis pelo nascimento do que conhecemos hoje por Neoclássico, um movimento que faz renascer as questões ideológicas e estéticas da Antiguidade Clássica. Sabemos, então, que França no século XVIII se encontra em mutação social, mas porquê? A resposta deleita-se, obviamente, no regime político em vigor durante a primeira metade e meados do século em questão: a monarquia absolutista.
Após reter algum conhecimento sobre a identidade das personagens representadas, a sua cronologia e história, podemos ler melhor este quadro a partir dos objetos representados. Destaca-se o cálice no centro da pintura: portador do veneno destinado a Sócrates. O veneno seria derivado de uma planta de onde se extrai a Cicuta que seria utilizada como veneno desde a Antiguidade. Ainda associados a Sócrates, encontramos outros objetos e artefactos: encontramos uma corrente e grilhões na cama e aos pés de Sócrates que simbolizam a sua encarceração. Contudo, notamos que os grilhões estão abertos, deixando o filósofo livre. Isto poderá mostrar que nenhuma corrente poderá aprisionar o filósofo e as suas ideologias. Atrás de Sócrates, por cima da cama, encontramos uma lira.
Aos pés de Platão encontramos objetos muito óbvios: um rolo de papiro, caneta e frasco de tinta. Outro objeto encontrado na Antiguidade era a lucerna (pequenos utensílios destinados à iluminação e alimentados com azeite) como encontramos elevada num pedestal no centro da cena.
Com um olhar mais atento, podemos ainda notar nos pormenores dos bancos de pedra em que se sentam Platão e Crito. É curioso como nestes dois elementos encontramos assinaturas do pintor que parece identificar-se com a posição social das duas personagens, isto é, dois alunos do grande mestre Sócrates. Ainda nestes elementos de pedra, em foco onde Crito se senta, encontramos uma figura da coruja que podemos associar rapidamente com Atena e consequentemente criar, novamente, esta linha temporal com a Antiguidade greco-romana.
Já sabemos que Sócrates, o filósofo, sempre combateu e lutou por ideias de justiça, igualdade e virtude humana, e à luz dos seus ideais nascem novas realidades filosóficas, bem como servirão de inspiração para inúmeros intelectuais incluído pintores neoclássicos como David. Séculos mais tarde, Sócrates torna-se novamente nesta imagem de luta e renovação social e humana. E tal como este, Platão também renasce no século XVIII como a voz destes valores.
Após a análise visual à obra de Jacques-Louis David poderemos então refletir sobre as razões que levaram o artista a realizar esta cena. O seu contexto sociopolítico é esculpido num panorama de conflito e mudanças drásticas.
O estado social e político de França no século XVIII, levantou a ira dentro do pintor que, anteriormente, estaria apenas absorvido na esfera da pintura. (HERBERT; 1972: 67). Não seria a primeira nem a última vez que esta cena renasceria no panorama artístico e cultural. O seu quadro, comissariado por Charles Michel Trudaine de la Sablière, integrou uma exposição no Louvre com outros quadros da mesma temática, nomeadamente em competição com o quadro com o mesmo nome de Pierre Peyron. Para além da esfera da pintura, a temática que David explora é produzida também na literatura, no teatro, no desenho, entre outros meios:
“Quatro meses depois, começou a apresentação de “Brutus” de Voltaire pelo Teatro Nacional. Nessa altura, a politização do teatro já estava muito para além de Carlos IX, e o número crescente de peças celebrava eventos revolucionários. A nova peça de Collot d’Herbois, “O julgamento de Sócrates“, estreou noutro teatro dez dias antes do renascimento de Brutus (…)” (HERBERT; 1972: 71)

David torna-se uma personagem bastante importante não só pelo levantamento destes temas nas áreas artísticas mas por ser um fervoroso apoiante da revolução e dos seus valores. Assim, carregado de raiva pelo sistema monárquico ativo até 1789, Jacques-Louis David envolve-se extremamente com a política e principalmente com os ideais jacobinos. Defendeu sempre a morte do Rei-Sol, Louis XVI, e a queda total da nobreza e aristocracia. Toda a simbologia que podemos associar a Sócrates, o filósofo encarcerado mas livre de proclamar as suas ideias e pensamentos, podemos também associar a David como figura impulsionadora do pensamento revolucionário.
Em “Reflexões sobre a Revolução Francesa” (1790), Edmund Burke argumenta que a Revolução Francesa teria um final desastroso porque a suas ideologias abstratas, mas supostamente racionais, eram incapazes de compreender a complexidade da natureza humana e da totalidade da sociedade. Não estariam prontos para as consequências destes atos revolucionários e transgressores. Mesmo assim, temos de olhar para estes movimentos culturais e radicais como os motores e vozes da sociedade, isto é, da pessoa comum. É esta pessoa comum (no seu sentido coletivo), que se aproxima então dos filósofos da Antiguidade: a sua luta pela mudança, o seu corpo existente que procura um lugar para projetar a sua voz.
Numa última análise podemos compreender a força e a potencialidade da imagem, não só da pintura mas da imagem mística e transversal de Sócrates. Em primeiro caso, a pintura de David ganha força na sua época por evocar valores contemporâneos e revolucionários. Esta imagem reconstrói por sua vez a figura de Sócrates, a qual já desconstruímos e compreendemos.
Filosofias e ideologias tem o poder de percorrer os tempos, várias épocas e sobrevoar diferentes civilizações e culturas. O caso de Sócrates ou Platão não são casos isolados, as diferentes sociedades permanecem abertas a diferentes inspirações do passado, sejam elas materiais ou imateriais. De facto, “A morte de Sócrates” de Jacques-Louis David continuou a espelhar os seus valores e aspetos técnicos e a inspirar novas gerações de artistas, pensadores, poetas.
Até a idade contemporânea recolhe estas formas estéticas (antigas) para finalidades semelhantes ou diferentes. O olhar contemporâneo continua e continuará a olhar para a obra de David e a associá-la com tempos de revolução e mudança e, possivelmente, se tornará numa nova imagem para afirmação de ideologias, conflitos e lutas contemporâneas.
Bibliografia
Burke, Edmund. (1790) Reflections on the revolution in France. Editora James Dodsley
Johns, Christopher M. S. (1998) Antonio Canova and the politics of patronage in revolutionary and Napoleonic Europe. University of California Press
Gombrich, E. H. (1950) – A história da arte. 16a Ed.. Lisboa, editora LTC
Herbert, Robert L., (1972) David, Voltaire, Brutus e a Revolução Francesa, Editora Allen Lane
Hauser, A. (1951) História social da arte e da literatura
Panofsky, E. (1995) Estudos de Iconologia – Temas Humanísticos na Arte do Renascimento, Lisboa Editorial Estampa
Platão. Apologia de Sócrates – Críton – Fédon, Lisboa, editora Europa-América
The Metropolitan Museum of Art. Europe in the Age of Enlightenment and Revolution, vol. 7, Nova Iorque
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