Em “Mystic River” (2003) tudo começa com uma recordação (inicialmente) feliz de três amigos – Jimmy, Dave e Sean – a jogar hóquei na estrada. Entretanto, eles acabam por escrever os seus nomes num cimento ainda por secar, num puro acto de rebeldia, mas deparam-se com um senhor que os interpela, fazendo-se passar por um polícia e que acaba por levar Dave no seu carro. Os rapazes de 11 anos ficaram sem reacção e aceitaram que aquilo havia de se resolver.
Mais tarde – concretamente, 4 dias depois –, Dave aparece, revelando sinais fortes de violação. É interessante verificar que o dito “motivo narrativo” se forma com bastante naturalidade. Porque este acontecimento é o real alicerce de toda a história – e bem, atenção.
No entanto, o que espoleta verdadeiramente a dúvida cinematográfica, enquanto fenómeno espectador-obra, tem que ver, décadas mais tarde, com a morte (assassinato) de Katie, filha de Jimmy – interpretação de Sean Penn. É curioso verificar um crescimento dramático bastante edificante enquanto se vão descobrindo as razões por detrás deste crime, mas a verdade é que o filme sabe a pouco. Mesmo distanciando-se da previsibilidade que praticamente mata filmes deste género, acaba por se auto-limitar artisticamente, com uma história com grandes construções de background, mas quase sem sal cinematográfico, tão importante em obras fílmicas, e não só.

Deste modo, apesar de haver um Sr. bastante competente a tomar conta das operações no que à realização diz respeito – falo de Clint Eastwood –, nota-se perfeitamente que o argumento é, nas aspirações do próprio, algo limitativo e pouco audaz. Temos de ser francos: é preciso algo mais para preencher cinematograficamente os bons espectadores. Não basta dar uma pitada de suspense, se depois em matéria de twists, sempre necessários quando bem feitos, o filme é muito pobre.
Tudo bem que a construção, ou melhor, a estrutura do próprio argumento enquanto princípio, meio e fim é, indubitavelmente coesa, no sentido em que responde a todas as perguntas e linhas obscuras – que infelizmente foram escassas –, mas Brian Helgeland, argumentista que adaptou o romance (com o mesmo nome) de Dennis Lehane, sabe, ou deveria saber que o verdadeiro filme está por vezes não na história per si, mas na forma como é contada.
Desta forma, ser linear é cair num abismo sem retorno, segundo o qual se obedece a regras já batidas. O filme é bom na medida em que vamos perspectivando sentidos narrativos possíveis, e bem, mas à medida que se vai desenrolando vai perdendo um certo brilho, precisamente porque vai eliminando hipóteses. E isso é uma autêntica frustração. Contudo, claro, o filme é mais que isto, é um drama bastante formal, que não trata o espectador por tu, apesar de ter na caracterização das personagens e numa banda sonora bastante adaptada a momentos de maior tensão. Todavia, carece de um verdadeiro clímax.

Regressando um pouco às personagens, é importante frisar que o acontecimento da infância deixou, indubitavelmente, marcas ferozes na vida de Dave – interpretação de Tim Robbins –, tornando-o uma pessoa insegura, sem grande matéria intrínseca. O próprio chega a dizer que se revê nos vampiros, que não estão exactamente vivos nem mortos, mas que por ali pairam.
Jimmy, por outro lado, é um “durão”, uma pessoa que não se deixa afectar facilmente pelas coisas, mas que tem um amor muito grande por Katie, quase o seu talismã sentimental e interior. Sean é, curiosamente, o inspector que fica responsável por investigar o assassinato, vendo Dave como principal suspeito, devido à sua personalidade perturbada. E é desta forma que os três amigos de infância se conectam tantos anos depois.
Assim, estamos perante um filme que sabe o que quer contar, que o faz bem, mas sem nunca nos transportar para um dimensão cinematográfica diferenciadora, capaz de imortalizar na nossa memória – porventura o objectivo primordial de qualquer manifestação artística, além de transmitir conhecimento e cultura (não confundamos os dois) – o dito auge fílmico e catártico tão inerente à boa sétima arte.