Um dos túmulos mais visitados pelos apaixonados em Paris, no cemitério Père-Lachaise, é o do casal Pedro Abelardo (1079-1142) e Heloísa de Argenteuil (1090-1164). Retratados na película “Stealing Heaven”, do realizador Clive Donner, este romance drama histórico lançado em 1988 é icónico ao retratar o período medieval, com o conhecimento fortemente atrelado à Igreja Católica. Pedro Abelardo é um filósofo e professor universitário, sob os ditames da Igreja, e entende que o dom que Deus havia lhe dado para lecionar exigia-lhe um pacto em contrapartida. Tanto é assim que, mesmo sem ser padre, assume o celibato como forma de se dedicar exclusivamente ao ensino.
As suas aulas são aguardadas, ousa na didática ao dar voz aos alunos e promove o debate, quase uma heresia na ortodoxa linha de ensino de até então. Derek de Lint interpreta brilhantemente o filósofo. Há uma cena no filme que é para lá de divertida: os alunos contratam uma prostituta para assediar o professor e ficam à espreita, apostando se ele cederia ou não às tentações da carne. Há quem diga que não, ele manterá o seu compromisso com Deus. Outros aventam que Deus não tem coxas tão suntuosas assim.

O certo é que a proximidade entre professor e aluno tira um pouco da concentração de Abelardo, que é instado a se recolher na casa mais austera de Canon Fulbert, um amigo abastado da Igreja que vendia relíquias sagradas, tipo o feno da manjedoura onde Jesus Cristo nasceu e também pedaços da cruz onde o mártir foi sacrificado. Como observamos mais à frente num diálogo com o racional Abelardo, essas relíquias possuem o dom de se multiplicarem. Oportunismo puro!
Fulbert é tio de Heloísa, que vem hospedar-se em sua casa por não ter aptidão nenhuma para ser freira. Irrita as freiras com perguntas despropositadas, questionando a imagem e semelhança de Deus, logicamente acreditando que Deus pode bem ter partes pudendas. Essas e outras. Quando conhece Abelardo, um encontro dá-se entre barril de pólvora e rastilho aceso. Interpretada pela bela Kim Thomson, Heloísa compensa a sua fragilidade física, sendo uma rapariga bastante intelectualizada e questionadora. A atração é imediata e o amor proibido acontece. Passam a haver cochichos e ao saber da traição do hóspede, o tio contrata capangas para castrá-lo durante o sono.
Abelardo entende que tudo havia sido um castigo de Deus, pela fornicação. Heloísa revolta-se e amaldiçoa o tio. O certo é que ambos se separarão trabalhando em abadias distintas. Astrolábio, esse peculiar nome do miúdo e do fruto proibido, será cuidado por outros enquanto os seus pais cumprem os seus destinos. Em cartas inflamadas de amor e paixão, Abelardo e Heloísa revelam todo o poder e a força do amor, agora convertido num amor sublime e que venceria todas as barreiras. E venceu.

Bastidores de “Stealing Heaven”: a universidade onde Abelardo lecionava era a Notre-Dame e a Igreja estava a ser construída, com muito sacrifício e pedidos e pedidos de doações, um prédio no coração de Paris: sim, a icónica Catedral de Notre-Dame. A Paris que observamos é ainda rural, retrato fiel do período e emociona-nos perceber que acontecimentos quase milenares estão ao nosso dispor para visitações e encantos.
Uma película onde é necessário contextualização, de forma a não ficarmos a julgar com os olhos nem a confundir com o modo de ver o mundo de hoje. Inclusive, vale a pena aqui discutir e esclarecer que o depreciativo epíteto de Idade das Trevas para a Idade Média é equivocado, afinal, os germes das universidades que temos hoje foram plantados lá. Assim sendo, ao visitarem o túmulo de Abelardo e Heloísa, saibam da grandeza deste amor que venceu os desafios, assim como a barreira do tempo.
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