Naquela noite de frio, num sítio em Ibiúna, região fria de neblina, sentamo-nos em poltronas macias em frente à lareira. Unidos, homem e mulher, diante das chamas, no centro da vida, na proteção de uma casa distante, entre vinhedos. O fogo dançava, lambia os tijolos do forno, fazendo desenhos mágicos de estranhas salamandras estalando as suas peles.
Lembrei-me de uma cena do filme “Doutor Jivago” (1965), baseado no romance do escritor russo Boris Pasternak (1890-1960), detentor do Prémio Nobel da Literatura. Conta a história de um médico aristocrata, o Doutor Jivago, interpretado por Omar Sharif, cuja trajetória remonta aos horrores da revolução na Rússia, no início do século XX.
A princípio ele apoia o movimento, depois desilude-se com o socialismo. Envolve-se com a enfermeira plebeia, Lara, a bela loira de olhos azuis, a atriz Julie Christie. Entre dramas de consciência, adversidades e perseguições, refugiam-se numa choupana coberta de neve. Soam os acordes de uma música inesquecível: o Tema de Lara. Os amantes esquecem-se da guerra, do medo, do frio, entregando-se, corpos e almas, com desespero e ternura, em frente à lareira.

Se há povo de temperamento marcado pelo frio intenso é o russo. O chamado General Inverno sempre teve relevância em eventos ao longo da história da Rússia. Por cinco meses seguidos as temperaturas são baixas e o transporte difícil. O exército do Imperador Napoleão (1769-1821) foi fustigado pelo inverno rigoroso. Corria o ano de 1812. Rumaram em direção a Moscovo. Os russos retiraram-se usando a tática da “terra queimada”, arrasando plantações, aldeias, deixando para trás os inimigos, que ocuparam uma cidade deserta e em cinzas.
Os franceses foram obrigados a bater em retirada. Napoleão enfraquecido, humilhado, perplexo. A grande armada destroçada, caminhando sob neve pesada. O frio penetrando nas roupas esfarrapadas dos soldados exaustos. Milhares de homens congelados nas estepes luzidias como espelhos. Era o fim do sonho napoleónico.
Transporto-me para a exótica Moscovo. Estou perto do Kremlin, que abriga a residência do presidente e os tesouros czaristas. Caminho pela Praça Vermelha com suas cúpulas que parecem doces ou sorvetes coloridos. Atrás de mim, a Catedral São Basílio. Por todo lado paredes de terracota, ruas radiais que se cruzam, torres, monastérios, palácios. A neve formou um tapete branco. As pessoas deslizam sobre patins de prata vencendo as longas distâncias entre os edifícios. Usam chapéus grossos e quentes de abas nas orelhas. Casacos de feltro preto cobrindo as botas de cano alto. As mulheres, de faces rosadas, escondem os cabelos com xailes roxos e carmesins.

Quem é aquele homem elegante, com gola de urso? É Aliócha, saído do romance “Os Irmãos Karamazov“, de Dostoiévski (1821-1881). Aliócha, aquele que personifica o cristão, livre de pecado, cheio de amor, misericórdia e compaixão. Queria tanto falar com ele e revelar-me a mim mesma, mas ele escapa como um foguete. E aquele outro de semblante encovado e olhos injetados de sangue? É Raskolnikov, personagem do livro “Crime e Castigo“, também de Dostoiévski, o gigante da literatura russa. Raskolnikov está em colapso mental, com remorso por ter ousado assassinar alguém para defender as suas torpes ideias superiores.
Passa por mim como um raio. Em breve pagará o preço de ser descoberto e gemerá na prisão. E aquela mulher misteriosa, de saia preta e avental dourado, carregando uma valise na mão? É Anna Karenina, a adúltera descrita por Tolstói (1828-1910), desafiando princípios e valores, correndo em direção à estação. Deixo-a correr atrás do último comboio. Estou sozinha, com os livros a arder no meu peito, numa geada de epifanias, em plena Moscovo.
Volto o meu espírito à sala do sítio de Ibiúna. Faz frio. O inverno veio nos buscar. Cruzou estradas e rios. Sofrimentos e cansaços fizeram-nos compreender melhor os nossos sentimentos e os daqueles que amamos, filhos e netos gerados através dos ciclos e estações. A lareira nos aquece. Sorrimos um para o outro, resignados e cordiais.
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