“As Correções” (Editora Companhia das Letras, 2011, 2.ª edição, 584 páginas), de Jonathan Franzen, é um livro bastante interessante. Somos convidados a ler a história de uma típica família norte-americana de classe média, começando com o casal de velhinhos Alfred (meio senil com Parkinson), Enid, e os seus idiossincráticos filhos Gary (casado e pai de três filhos), Chip (diletante escritor que se aventura num trabalho em Vilna, capital da Lituânia) e Denise, chefe de cozinha de restaurantes importantes e que se descobre ser homossexual, ou bissexual, para ser mais exato.
Escrito na viragem do século XX para o século XXI, somos convidados a conhecer dramas familiares comuns, e são esses acontecimentos na maioria das vezes banais com os quais nos identificamos quando estamos reunidos em família. Como lidar com um ancião doente e que no passado se dedicou à família com todo o seu zelo? Fazermos churrascos para reunirmos amigos e parentes, nos entorpecermos com um pouco de álcool e carne queimada para disfarçarmos a nossa melancolia e depressão? Revelar e descobrir-se homossexual tendo que lidar com as incompreensões da família conservadora?
Ter na família o típico ovelha negra que está metido em negócios escusos? Estes dramas já não permeiam muitas das nossas relações? O autor vai deslindando verborragicamente tudo isso, mas engana-se quem pensa que é cansativo aos moldes de Marcel Proust (1871-1922). A verborragia aqui é banal e corriqueira, com rotinas que por mais que tentem surpreender, ficam na superfície dos acontecimentos, sem nada bastante heroico e que não intervenha algum tédio, mesmo na viagem de cruzeiro do casal setentão. Eis uma passagem típica de discussão entre irmãos, cito:
“Dois empregados de escritório, percebendo o enfrentamento entre duas partes exaltadas, levantaram-se e deixaram vazio um banco de mármore. Denise encostou-se no banco e cruzou os braços num gesto intransigente. Gary descrevia um pequeno círculo em passos curtos, com as mãos nas cadeiras.
‘Papai passou os últimos dez anos’, disse ele, ‘sem fazer nada para cuidar de si mesmo. Fica sentado naquela porra de poltrona azul, cheio de pena de si mesmo. Não sei por que você acha que, de repente, ele vai começar a…’
‘Bom, se ele achasse que podia haver uma cura…’
‘O que, para ele poder passar mais cinco anos deprimido e morrer infeliz aos oitenta e cinco em vez de oitenta anos? Vai fazer muita diferença?’
‘Talvez ele esteja deprimido porque está doente.’

‘Desculpe, Denise, mas essa não. Conversa. Ele está deprimido desde antes da aposentadoria. Já estava deprimido quando tinha uma saúde perfeita.’
Uma fonte murmurava ali perto, gerando uma razoável privacidade. Uma pequena nuvem desgarrada invadira o quadrante do céu privado delimitado pelos telhados circunvizinhos. A luz era costeira e difusa.
‘O que você faria’, disse Denise, ‘se mamãe ficasse chateando você sete dias por semana, dizendo que é para você sair de casa, ficasse espionando tudo que você fez e agisse como se a escolha do tipo de poltrona em que você se senta fosse uma questão moral? Quanto mais ela diz para ele se levantar, mas ele fica sentado. Quanto mais ele fica sentado, mais ela…’
‘Denise, você está vivendo num mundo de fantasia.’
Ela olhou com ódio para Gary. ‘Não fale comigo nesse tom superior. Não é menos fantasia achar que o papai é uma velha máquina gasta. Ele é uma pessoa, Gary. Tem vida interior. E ele é legal, pelo menos comigo…’
‘Comigo a coisa é diferente’, disse Gary. ‘E a mamãe, ele trata com a violência egoísta de um covarde. E eu digo que se ele quiser ficar sentado naquela poltrona e dormir até ao fim da vida, tudo bem. Gosto muito da ideia. Sou mil por cento a favor desta ideia. Mas primeiro vamos tirar a poltrona de uma casa de três pisos que está a cair aos pedaços e a perder todo o valor. Vamos melhorar um pouco a qualidade de vida da mamãe. Só isso, e daí ele pode ficar sentado na poltrona com pena de si mesmo até o dia de são Nunca.’“
Os dramas familiares são entremeados por altas doses de humor, mas um humor bastante polido e refinado. Aliás, Franzen vem criticando o aparato tecnológico que busca solucionar as carências e angústias do ser humano, o que não consegue de facto. Escrito no início do vislumbrado pelo orwelliano “1984“, onde a tecnologia prometia a todos curar estados depressivos, o certo é que 20 anos de vida deste “As Correções” mantêm-se atuais e indicam que as relações interpessoais com indivíduos de carne e osso são o que conta.
Ainda dá para se ler romances em pleno século XXI? Depende. Da qualidade do seu criador e do domínio de se prender o leitor da primeira à última página, sim. Tamanho não parece ser problema para Jonathan Franzen, que consegue criar histórias interessantes partindo do óbvio, sinal de qualidade da sua veia de escritor.
“As Correções” cumpre bem esse papel. Excelente literatura! Jonathan Franzen é autor também do livro de ensaios “Como ficar sozinho” e dos romances “Tremor“, “Liberdade” e “Pureza“. Sou meio suspeito para não dar nota 4 aos seus livros, pois sou confessadamente macaco de auditório do autor.
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