OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

O que compreendemos da vida? O que compreendemos de um livro? Certamente, este último atinge-nos com uma sinopse final onde racionalmente captamos tudo, mas nas obras do romancista Jonathan Franzen isso é impossível. Caudaloso nos seus romances, como propositados tijolos a atingir-nos a cabeça para desavisados zombies tecnológicos que ficam a vagar por aí, o peso dos seus livros (tanto concreto quanto metafórico) condicionam-nos isolamento. Como se precisássemos de nos recolher (e isso é um facto!) para carregar este gostoso fardo.

O defensor do romance que já vaticinou que a literatura nos pode conceder o beneplácito acerca das dores e angústias, em detrimento do mundo dos zombies, escreve como conversa, daí as suas personagens serem críveis e interessantes. “Liberdade“, “As Correções” e “Tremor” são alguns destes livros clássicos de histórias, ou melhor dizendo, estórias.

Em “Pureza” (Companhia das Letras, 615 páginas), Franzen aborda famílias disfuncionais (mais uma vez), personalidades interessantíssimas em núcleos e cenários tão díspares, mas que se encaixam, como peças de um quebra-cabeças. Os cenários retratados vão do interior dos Estados Unidos, passando pela selva boliviana e retratando Berlim Oriental pré-queda do Muro.

O romancista e ensaísta americano Jonathan Franzen

Romance psicológico e envolvente, traz a jovem Pip como protagonista (dizem que o nome é uma homenagem ao personagem Pip, de Charles Dickens, em “Grandes Esperanças“, do qual já tratei aqui) que precisa de pagar uma dívida universitária; a sua mãe Anabel, que por ideologia, lhe nega uma herança bilionária do avô; o seu desconhecido pai Tom que é um jornalista idealista; um hacker alemão que virou celebridade durante a reunificação do país e que é uma paródia de Julian Assange, vivendo escondido na Bolívia sob o beneplácito de Evo Morales e muitos outros personagens interessantes.

Jonathan Franzen carrega nas tintas e é caudaloso nas discussões conjugais que sempre descambam para o tédio, relata assassinato com justificativas plausíveis e descreve cenas de sexo com muita tensão e tesão, surpreendendo um pouco no seu usual vocabulário mais comedido.

Como já sou macaco de auditório de Jonathan Franzen, é sempre o tipo de autor que eu sei que irei gostar. Como já li tudo do sujeito, o que resta agora é aguardar o seu próximo romance verborrágico (uso o termo aqui na melhor aceção da palavra). Sem muitos dramas na vida particular, morro a rir das questões apresentadas nestes romances. Como neste trecho que destaquei em “Pureza”, cito:

Annagret pediu que ele deixasse as duas sozinhas, e ele foi para a sala, ao que tudo indica serenamente alheio ao facto de Dreyfuss não gostar de o ter por perto. Pip aproveitou para encher de novo a tigela com flocos de milho; pelo menos estava pondo um xis no quadradinho alimentação.

‘Martin e eu temos um bom relacionamento, exceto pelo ciúme dele’, Annagret explicou.

‘Ciúme de quem?’, perguntou Pip sem parar de comer. ‘De Andreas Wolf?’

Annagret assentiu com a cabeça. ‘Fui muito próxima de Andreas, e por muito tempo, mas isso aconteceu alguns anos antes de eu conhecer Martin.’

‘Então você era bem jovem.’

‘Martin tinha ciúmes das minhas amigas. Nada ameaça mais um alemão, até mesmo um homem bom, do que as mulheres serem amigas íntimas pelas costas deles. Isso realmente o perturba, como se houvesse alguma coisa de errada no mundo. Como se fôssemos descobrir todos os seus segredos, roubar o seu poder, não precisar mais dele. Você também tem esse problema?’

‘Acho que eu tendo a ser a ciumenta.’

‘Bem, é por isso que Martin tem ciúmes da internet. Porque é através dela que eu costumo comunicar com as minhas amigas. Tenho uma porção de amigas que nunca encontrei – amigas de verdade! E-mail, redes sociais, fóruns. Sei que Martin às vezes vê pornografia, não temos segredos entre nós, e, se ele não visse, seria o único homem na Alemanha a não ver. Acho que a pornografia na internet foi inventada para os alemães, porque eles gostam de ficar sozinhos, de controlar as coisas e de ter fantasias de poder. Mas ele diz que só faz isso porque eu tenho muitas amigas na internet.’

‘O que, naturalmente, deve ser o equivalente à pornografia para as mulheres’, disse Pip.

‘Não. Você só pensa assim porque é jovem e talvez não precise tanto de amizades.’

‘E então, você já pensou em relacionar-se com mulheres?’

‘O relacionamento entre homens e mulheres hoje em dia é terrível na Alemanha’, disse Annagret, o que, de algum modo, soou como um não.

‘Acho que só estava tentando dizer que a internet serve para satisfazer as necessidades às distâncias. De homens ou de mulheres.’

‘Mas a internet realmente satisfaz a necessidade das mulheres por amizade, isso não é uma fantasia. E porque Andreas entende o poder da internet, o quanto ela pode representar para as mulheres, Martin também tem ciúme dele – por causa disso, e não porque fui muito próxima de Andreas no passado.’

‘Certo. Mas se Andreas é o líder carismático, então ele é o sujeito que tem poder, o que me faz acreditar que, na sua opinião, ele é igual a todos os homens.’

Annagret fez que não com a cabeça. ‘O fantástico em Andreas é que ele sabe que a internet é a maior geradora de verdade de todos os tempos. E o que isso nos diz? Que tudo na sociedade realmente gira em torno das mulheres, e não dos homens. Os homens estão a olhar para fotografias de mulheres, e as mulheres estão se comunicando com outras mulheres.’

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!

Leave a Reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: