Às vezes, como filósofo e observador do mundo à minha volta, chego à conclusão de que “a natureza humana tende para o mal”, como nas conceções de Santo Agostinho e Kant. Sempre será necessário um esforço para combatermos esse mal, com razão e discernimento e imbuído do sentimento do bem. Nas nossas relações interpessoais, até devido ao facto de observar em mim mesmo e nos outros, sinto-me um completo idiota tal Príncipe Minskin do livro “O Idiota“, de Dostoievski, a ver o jogo de interesses, conchavos e traições advindas das nossas relações. Daí a minha alegria ao ler “Grandes Esperanças” (Saraiva de bolso, 641 p.), do inglês Charles Dickens (1812-1870), um dos clássicos da literatura universal.
Pip é um menino órfão que mora no interior de Inglaterra com a sua irmã e o seu esposo, o ferreiro Joe. Vítima de toda sorte de abusos, principalmente por parte da irmã, mantêm o coração puro e enternece-se da bondade de Joe. Num belo dia, passeando pelo campo, depara-se com um foragido da Justiça que o ameaça caso ele não lhe trouxesse alimento, pois estava esfomeado e sem condições de empreender fuga naquele instante. O coração bondoso e amedrontado do garoto obriga-o a subtrair da despensa provisões e mesmo com pouco alimento na casa, ele consegue atender à demanda do forçado.
Um dilema moral apresenta-se e Pip assusta-se com a chegada da polícia que vem interrogar à porta da sua residência se tinham alguma informação de dois celerados fugitivos. Entre cascudos e broncas da irmã, sob o olhar piedoso de Joe, Pip segue vivendo, na mais absoluta pobreza.
Cito um de seus sentimentos: “Na época em que comecei a falar, notei que, nos seus caprichosos e violentos castigos, Mrs. Joe era injusta para comigo. E fiquei com a convicção de que, pelo facto de me educar ‘convenientemente’, não tinha minha irmã o direito de me domesticar a chicote. Ao cumprir os meus castigos, jejuns, vigílias e outras penitências, sempre alimentei essa ideia, e de tanto pensar nela na minha infância desvalida e solitária, acabei por me persuadir de que era moralmente tímido e muito sensível“.

Até que uma misteriosa mulher da vila necessita de um pequeno criado e abre-se a oportunidade para que ele seja esse serviçal. Miss Havisham é uma figura: abandonada pelo noivo, emagreceu horrores e não se dispõe mais a ver a luz do sol, tendo tomado a atitude de ter feito parar todos os relógios da casa. Cadavérica, fica sempre num cômodo trajando o vestido de noiva que só faz envelhecer. Psicologicamente, passa a odiar homens e prevenirá a “sobrinha” adolescente Estelle sobre as mentiras que os mesmos contam.
Pip é apresentado e Miss Havisham, como era de se esperar, o trata com frieza, mas o garoto vai aos poucos convivendo com os criados e também um rapazote que, assim como ele, estava estagiando na casa, com o qual se bate numa luta corporal no jardim da residência. Mas o conflito dura pouco: meio fanfarrão, o garoto faz muitos trejeitos, toma um tabefe e sossega o facho.
A vida segue ordinária para Pip até um belo dia em que um advogado de Londres chega à vila para noticiar à sua irmã que havia recebido orientações no sentido de dispor de uma pequena fortuna ao menino, e que o benfeitor(a) havia dado ordens expressas de permanecer anónimo.
Segue-se que Pip deveria concluir os estudos na capital londrina e já nos preparativos, observamos os jogos de cenas e interesses da sua irmã que se mostra amável, assim como o negociante de sementes Pumblechook, que é amigo da sua irmã e a parabeniza sempre pela esmerada educação que concedia ao ingrato Pip. Bem, todos estes irão comer agora na mão do menino, que investe no alfaiate da vila para despeito e surpresa dos moradores. Começam assim as suas grandes esperanças.
O advogado M. Jaggers é outro figuraça. De poucas palavras e um tanto quanto impaciente, já despacha os seus clientes na entrada do seu escritório. Espartano, é um primeiro ponto de apoio para o menino na cidade grande. Lava as mãos a toda hora, parece que já se estava a prevenir da Covid-19. O seu secretário Wemmick torna-se amigo de Pip e também lhe oferece apoio. Aos poucos, observamos Pip a tornar-se num jovem educado e refinado. Mora numa república, daí se muda para uma casa mais confortável e de certo que se torna até perdulário.

O rapazote com o qual se atracara na luta em casa de Havisham, Herbert, quem diria, torna-se no seu melhor amigo em Londres, e quando Pip retorna para a província, percebe-se que o seu espírito já não se compraz em retornar à antiga ferraria e casa da irmã, apesar de gostar bastante de Joe. Visita Miss Havisham e percebe-se enamorado e cada vez mais apaixonado por Estelle, que faz dele gato sapato. Fica subtendido que a madrinha da sua bem-aventurança é a esquisita reclusa, ainda mais que ela é cliente do advogado, mas acontece uma reviravolta e revelação do benfeitor(a) que não contarei para não estragar o prazer da descoberta.
Pouco afeito aos negócios, Pip sacrifica-se para facilitar o empreendimento numa companhia marítima de Herbert e pratica a boa ação com uma discrição cavalheiresca. Envolve-se em apuros e o final irá coincidir com o início e percebe-se também que determinados factos nos marcam para o resto da vida. Quando retorna à província, um tanto desiludido com tantas trapalhadas, pretende deixar o coração falar mais alto e submeter-se a um casamento com uma bondosa moça, mas surpreende-se com o facto desta se ter casado com Joe, que ficara viúvo.
Charles Dickens é um escritor verborrágico por vezes. Mas, ao mesmo tempo, revela as personalidades tão bem e com bastante humor, mesmo nas passagens trágicas, que nos conduz pelas mãos, chegando o leitor a sentir a fome, o medo, as dores e alegrias dos retratados. Um clássico da literatura com passagens enternecidas de quem se dispõe a fazer o bem, sendo Pip um garoto singelo que mantêm a honradez mesmo nas situações mais complicadas.
Confesso que me identifiquei um pouco com Pip, pois na infância, durante algum tempo, morei de favor na casa da tia e tudo o que acontecia era atribuído a mim, pelo menos as coisas desagradáveis. Sabendo da trajetória de Pip, percebi que “o que não nos mata, nos fortalece” e como se fosse um retrato instantâneo de minha história, cheguei ao fim com um sentimento de documentário de minha própria vida. Um livro magistral e uma ode às verdadeiras amizades! Como a do bom ferreiro Joe.
Assisti ao filme “Grandes Esperanças” para escrever esta resenha. Dirigido por Mike Newell, com Jeremy Irvine, Ralph Fiennes e Helena Bonham Carter, a película de 2012 com duas horas e oito minutos de duração é excelente com atuações convincentes de Fiennes e Bonham Carter como a excêntrica Miss Havisham.
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!
One thought on ““Grandes Esperanças”: Um elogio à amizade”