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Porque A Arte Somos Nós

Foi com satisfação que li “Asfalto Selvagem“, do dramaturgo, jornalista e escritor Nelson Rodrigues (1912-1980). Dividido em dois volumes pelo Círculo do Livro, um com 203 e o outro com 387 páginas, a novela ambientada na década de 1960 apresenta-nos como personagem principal Engraçadinha (nome e não apelido), filha de um deputado do Espírito Santo (um dos Estados brasileiros). A 1.ª parte aponta “Engraçadinha – Seus Amores e seus Pecados dos 12 aos 18“.

A protagonista é uma ninfeta prima de Letícia e que está noiva de Zózimo. Porém, ela apaixona-se pelo primo Sílvio que está noivo de Letícia. Dr. Arnaldo, o pai, esconde um segredo e comete suicídio, logo ele, um exemplar pai de família e deveras recatado.

As nuances de sedução perpassam a narrativa, desenvolvida a partir de crónicas que Nelson publicava nos jornais e que logo ganharam imensa notoriedade pelas ruas do Rio de Janeiro. Aqui vale um esclarecimento: é preciso atestar à época da publicação destes textos, e a alcunha de “Anjo Pornográfico” atribuída ao seu autor pode fazer parecer que ele era vulgar em suas descrições. Nada disso, já havia lido algo sobre na brilhante biografia sobre ele, escrita por Ruy Castro.

Voltando ao livro, Letícia declara o seu amor a Engraçadinha que a rechaça, estando ela louca de paixão por Sílvio, que se auto-mutila. Como desgraça pouca é bobagem, Engraçadinha casa-se com o sonso do Zózimo, mesmo este sabendo que ela não o amava. Um verdadeiro folhetim de jornal.

Na 2.ª parte, intitulada “Engraçadinha – Seus Amores e seus Pecados (depois dos 30)“, faz-se um recorte de 20 anos e vamos encontrar D. Engraçadinha morando com Zózimo e seus filhos no subúrbio do Rio de Janeiro, na Rua Vaz Lobo. O engraçado é a caracterização do personagem Zózimo, fanático torcedor do Flamengo e que não largava a vestimenta rubro-negra. A dizer que Nelson era torcedor fanático do Fluminense, arquirrival do time da Gávea. Mas aparecem outros personagens e foi aqui que me peguei gargalhando em várias passagens.

Nelson Rodrigues

Agora convertida à religião, Engraçadinha é evangélica e mantêm o seu lindo corpo, sendo Silene, a sua filha adolescente de 14 anos, a sua cópia perfeita. Aparece o Dr. Odorico, juiz de Direito que se encontra por acaso com Silene no centro do Rio e fica impressionado com a semelhança desta com uma linda ninfeta que tinha avistado num velório no Espírito Santo há duas décadas. Aproxima-se de Engraçadinha e vai fazendo a corte, tudo sobre as vistas do pacato e insosso Zózimo. Afinal, era apenas um amigo da família de longa data, auto-proclamado, diga-se de passagem.

Nelson capricha nas tintas na composição pusilânime deste personagem: casado numa relação fria que caminha para as bodas de prata, entende que a convivência só faz do relacionamento um cemitério e engraça-se para Engraçadinha e a sua filha, querendo comprá-las com presentes. Chega a dar uma geladeira. Ele não presta: imbuído do seu poder de autoridade, dá carteiradas nos taxistas, ameaça prender quem se coloca no seu caminho e é um verdadeiro canalha nas suas relações, sendo, ao mesmo tempo, um bobo apaixonado, uma vez que Engraçadinha resiste a seus flirts e aos seus versos literários ridículos, tais este: “E entrego o corpo lasso à fria cama“, ditado por um amigo jornalista.

A novela descreve bem os ambientes das redações dos jornais, dos cafés do Rio de Janeiro e no subúrbio, um núcleo apresenta-se com o jovem Leleco, que vem a ser o namoradinho de Silene, para furor de Durval, irmão e filho lindo de Engraçadinha, que por ventura vem a ser filho de Sílvio. Importante ressaltar a adoração do filho pela mãe, e vice-versa.

Leleco defende-se de uma armadilha feita por três colegas, que queriam sodomizá-lo, uma vez que ele não dividira a primeira noite com Silene. Mata Cadelão e passa a ser o suspeito, assim como um professor romeno de música casado com uma mulher que é desejada pelo repórter Amado Ribeiro, que arma para o marido corno para que este seja incriminado. Interessante ressaltar as cenas das torturas na delegacia, onde o direito de defesa é solenemente ausente e o cacete corre solto. Tinhorão, um reles jornalista e possuidor de uma lata velha que se passa por automóvel, é o típico garotão que intenta conquistar todas as meninas com a sua lábia.

Imaginem todos estes encontros, desencontros, confusões, amores e taras descritas num ritmo frenético e sensual. Como se não bastasse, a religiosidade de Engraçadinha é colocada de lado quando se esbarra em Luiz Cláudio que a princípio a sequestra e estupra, ficando esta apaixonada. Enquanto isso, Dr. Odorico passa por toda sorte de ridículo na sua vã tentativa de conquistar a recatada dona de casa casada com o rubro-negro Zózimo. E dizer que Letícia aparece no fim para atormentar mais a nossa protagonista e se apaixonar pela sobrinha Silene.

Os escritos de Nelson Rodrigues receberam o epíteto de “A vida como ela é”, e é mais do que justo essa menção. Um escritor popular que escrevia para o povo, em crónicas diárias de jornal e foram muitos os que as recortaram para colarem no caderno e se enredarem nessas tramas existenciais e muito presentes na vida de cada um de nós.

Marcelo Pereira Rodrigues colhendo autógrafos de Ruy Castro durante a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), quando também foi uma das atrações

O gostoso do livro foi ver as descrições das Ruas México e Uruguaiana, ruas do chamado centro antigo do Rio, locais os quais sempre gostei de passear, de modo a visitar os sebos tradicionais. Se não vivi à época para recortar estas crónicas, é com felicidade que as vejo reunidas em forma de livro e que deleite ter o prazer de me instruir e rir horrores em muitas das passagens. Um livro maravilhoso!

– Pelo contrário! Eu me casei com uma santa! E uma coisa não impede a outra: a esposa e a amante. Pode parecer cinismo, mas eu acho o seguinte: entre o desquite e a infidelidade, acho esta última muito mais generosa, humana, familiar e social. Palavra de honra!

– Dr. Odorico, conversando com um amigo, Dr. Eustáquio

Marcelo Pereira Rodrigues

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