“1984” (Unibolso Duplo Editores Associados, 300 p.), livro do britânico George Orwell (1903 – 1950), é um dos clássicos modernos da literatura. Publicado em 1949, trata-se de uma distopia que apresenta um Estado totalitário que sob o codinome de O Grande Irmão, a todos vigia e tudo vê. O personagem principal é Winston Smith, funcionário medíocre do Ministério da Verdade, sendo que a sua função é a de reescrever alguns trechos da História, na intenção de fazer entender a todos que o passado não tem mais importância, apenas o presente oferecido pelo governo ditatorial é relevante. Esta novela visionária apresenta Londres no ano de 1984, daí o título da obra.
O Grande Irmão, Big Brother em inglês, vigia-te 24 horas por dia. Com cartazes apresentando uma sisuda cara com bigode, na teletela existente na casa de todos os cidadãos, o indivíduo é levado a assistir a propagandas estatais e inversamente, é assistido o tempo inteiro pelo aparelho.
Winston aos poucos vai se rebelando contra o sistema. Mas silenciosamente, pois qualquer ato de insubordinação poderia ser punido com a morte, mesmo o simples pensamento, sob a tutela da polícia do Pensamento. Chama-se a isso ‘crimideia’ e é aí que aparece um diferencial na obra: Orwell aventa uma gramática nova e dá-lhe o nome de ‘Novilíngua’. Claro que essa só é utilizada quando o narrador vai tratar das regras estatais, sendo que não atrapalha em nada o ritmo da leitura. Método semelhante com a gramática nova apresentada no excelente “Laranja Mecânica“, de Anthony Burgess.

Voltando a “1984”, essa vida ordinária, como também a vida ordinária dos seus vizinhos no prédio habitacional, leva Winston a relacionar-se com Parsons, pai de dois filhos e que percebe que as crianças já foram lobotomizadas pelo sistema político atual, sendo capaz inclusive de denunciarem os próprios pais, se fosse o caso; e Syme, o mais próximo que Winston possa chamar de amigo, uma vez que também a amizade é proibida, sendo que o único laço de companheirismo que um indivíduo poderia ter era com o Partido. Partido este que se refere a uma das três grandes potências do globo, sendo as duas a Oceania e a Eurásia, sempre em guerras uma com as outras e, ao que parece, também totalitárias.
O grande inimigo do Estado tutelado pelo Grande Irmão é Goldstein, uma espécie de terrorista do tipo Osama Bin Laden (1957 – 2011). Adendo: atenção CIA, Trump e afins: não estou fazendo apologia e assim sendo, por gentileza, parem de me espionar e desliguem a vigilância na minha webcam, que se encontra no momento desligada. Um pouco de humor para não contrariar o Grande Irmão dos dias atuais.
Winston apaixona-se por uma colega de trabalho, Júlia, e infringe outra das normas. Com um Estado castrador e reacionário, uniões estáveis apenas significam procriação e manutenção da espécie. Nada de romântico e edulcorado é aceite. Ambos vivem esse tórrido amor e se revelam rebeldes apaixonados. Winston aventura-se a sair da sua zona de conforto e aluga um quarto para o seu caso num bairro de classe baixa, a dos proles (proletários), onde, vez ou sempre, observa uma bomba foguete estourar em cima de seus moradores. Trata-se de um estratagema do próprio governo para fazer crer aos seus moradores que o país estava em guerra e sendo atacados o tempo todo.
Winston e Júlia são capturados e infligidos a toda sorte de torturas, física e psicológica. Uma lobotomia vai aos poucos transformando-os de homens em espantalhos, e a subserviência é assumida quando nada mais há a fazer frente ao Grande Irmão, o governo totalitário que é implacável na aplicação das leis. Deixo aqui umas pistas no intuito de intrigar a quem não leu, para que sintam mais curiosidade de ler: a temida sala 101. Quando os prisioneiros estão em vias de serem enviados ao sítio, é uma tortura psicológica que faz definhar os nervos. Ironicamente, identifico-me com o 101 por ser o número do meu apartamento.

Um pouco dos bastidores deste livro: ele foi publicado e verificado o seu sucesso pela visão aguçada e crítica do seu autor, quiseram impingir a pecha de uma obra que criticava o Estado Soviético com o seu comunismo socialismo. George Orwell, esse jornalista inglês, não foi tão rotulável assim. Com bastante tristeza, observamos, para além da União Soviética, governos autocráticos esmagarem quaisquer focos de resistência e, na ditadura do partido único, algumas nações da América do Sul e mesmo países europeus, isso sem contar com a China, tiveram o desprazer de ter que se submeter a sentenças iguais a esta: 2 + 2 = 5.
Mesmo que contrarie a lógica, o certo é que se o Estado autoritário afirmar que você tem que pensar que são 5, então é 5 e pronto. Não tem discussão. Livro com várias possibilidades de interpretação e que certamente serve de inspirações a artistas, ao findar a obra lembrei-me da canção da excepcional banda Radiohead, com a sua 2 + 2 = 5. Li a letra e encontrei vestígios. Assisti ao clip e tive certeza.
Um dos trechos mais extemporâneos de “1984” diz respeito à visão que um livro revolucionário citado na obra (um livro dentro de um livro) faz do proletário. Nossa sorte ao citar esta passagem é que apenas espíritos mais evoluídos possuem o hábito da leitura. Sim, sei que pode parecer elitista, mas é constrangedor observar verosimilhanças entre a distopia e a nossa realidade. Deixo-lhes com a citação ferina, mas que, infelizmente, é observável em muitas das situações:
“Na prática, os proletários não têm o direito de entrar para o Partido. Os mais bem dotados, que poderiam tornar-se fulcros de descontentamento, são simplesmente assinalados pela Polícia do Pensamento e eliminados. Mas esse estado de coisas não é necessariamente obrigatório, nem é questão de princípio. O Partido não é uma classe no antigo sentido da palavra. Não tem por objetivo transmitir o Poder aos filhos; e se não houvesse outro meio de guindar os mais capazes aos postos do comando estaria perfeitamente disposto a permitir a entrada de uma geração nova das fileiras do proletariado. Nos anos cruciais muito contribuiu para neutralizar a oposição o facto de o Partido não ser um organismo de fundo hereditário.
O antigo tipo de socialista, treinado para lutar contra o que às vezes se chamava ‘privilégio de classe’, supunha que o que não fosse hereditário não podia ser permanente. Não percebia que a continuidade de uma oligarquia não precisava de ser física nem perder tempo a pensar que as aristocracias hereditárias sempre tiveram vida curta, enquanto que as organizações renovadoras, como a Igreja católica, às vezes duram centenas e mesmo milhares de anos. A essência do jugo oligárquico não é a herança de pai para filho, mas a persistência de certo ponto de vista em face do mundo e de certa maneira de viver, imposta aos vivos pelos mortos.
Um grupo dominante só continua a mandar enquanto consegue nomear os seus sucessores. O Partido não se interessa pela perpetuação do sangue, mas pela continuação da entidade. O que importa não é quem maneja o Poder, contanto que permaneça sempre a mesma estrutura hierárquica.
Todas as crenças, hábitos, gostos, emoções e atitudes mentais que caracterizam a nossa época são realmente destinados a sustentar a mística do Partido e a impedir que se perceba a verdadeira natureza da sociedade atual. A rebelião física não é possível no momento, nem qualquer começo de rebelião. Dos proletários nada há a temer. Entregues a si mesmos, continuarão, de geração em geração e de século em século, trabalhando, procriando e morrendo, não apenas sem qualquer impulso de rebeldia, como sem capacidade de descobrir que o mundo poderia ser diferente do que é.
Só poderiam ser mais perigosos se o progresso da técnica industrial tornasse necessário educá-los mais; porém, como a rivalidade militar e comercial já não tem importância, declina o nível da educação popular. As opiniões das massas ou a ausência dessas opiniões são objeto da máxima indiferença. Não é possível dar-lhes liberdade intelectual porque não possuem intelecto. Num membro do Partido, por outro lado, não se pode tolerar o menor desvio de opinião a respeito de assunto comezinho.“
Experiência empírica e sensorial, transcrevi esta citação ouvindo no volume máximo 2 + 2 = 5, dos Radiohead. Fantástico tudo!
3 thoughts on ““1984”: Não importa o que Você Diga: 2 + 2 = 5”