I
Tribulação, Tristeza e Tragédia
Realizado por Isao Takahata, “O Túmulo dos Pirilampos” (“Grave of the Fireflies“) (1988) é um filme de animação japonês que desde as primeiras cenas estabelece um tom moribundo: O protagonista anuncia a data da sua morte; corpos acumulam-se no chão; as pessoas que por eles passam verbalizam repulsa. Não há que enganar. O que se segue não é uma visualização fácil, mas sim necessária. Estamos no Japão em plena Segunda Grande Guerra e acompanhamos os dias desafiantes de Seita (Tsutomu Tatsumi), um adolescente, e a sua irmã mais nova Setsuko (Ayano Shiraishi).
A agitação é causada pelos bombardeamentos do inimigo, que forçam os cidadãos a abrigarem-se em refúgios, na esperança que a sua casa não seja reduzida a cinzas. Entre os destroços, procuram-se salvar os feridos e queimar os defuntos, deixando pais sem filhos e filhos sem pais. Em tenra idade, os jovens protagonistas são deixados à sua mercê, tal como milhares de filhos da nação japonesa à época.
Assolado pelo desespero das circunstâncias e pela inocência orgulhosa da adolescência, o filme colecciona alguns dos momentos mais dolorosos jamais animados, enquanto tempera a história com fugazes mas preciosos instantes de alegria e conexão. Como narrativa, é um pouco a antítese da animação “O Meu Vizinho Totoro” (1988), na medida em que este é quase sempre uma aventura mágica de algodão doce e a obra em estudo constitui uma experiência primariamente angustiante.

II
O Inimigo como um Qualquer Coletivo Invasivo
No capítulo anterior referi-me aos invasores como sendo “inimigos”, evitando particularizar a entidade que está a causar os danos. Isto porque o próprio filme não está interessado em apontar o dedo a um país. Na ótica da obra, qualquer entidade que ataque o Japão é, naturalmente, sua inimiga. No entanto, o foco da história está nas represálias desses ataques e na inconsciência de que esses ataques provocam sofrimentos irreparáveis àqueles que em nada estão relacionados com o assunto.
Não é novidade que o povo é a maior vítima de qualquer guerra. Desde a escassez de recursos até ao desmembramento de famílias, passando pela consequente destruição que provocam, os movimentos bélicos, e em particular os bombardeamentos, desumanizam qualquer tipo de conflito e atacam o núcleo das nações onde não mora qualquer culpa.
III
A Desnutrição da Empatia
Perante um cenário tão negro e uma sucessão de micro eventos inquietantes, a insensibilidade humana acaba por destacar-se de forma incisiva ao longo do filme. Começa logo no desprezo inicial pelos corpos do chão, mas evolui para a normalização da morte e para uma profunda ausência de empatia. É possível enumerar vários momentos, entre os mais óbvios, a cena onde Seita leva Setsuko doente até ao hospital. O médico resume-se ao diagnóstico “fraqueza devido a desnutrição”, chamando de imediato o próximo paciente.
Noutra cena em que Seita, depois de ser enxotado, é levado à esquadra acusado de roubar comida, o máximo de compaixão que o agente demonstra antes de o deixar sair em liberdade é oferecer um copo de água. Devido à carência, há ainda outra sequência em que um agricultor nega comida aos protagonistas em troca de dinheiro. “O Túmulo dos Pirilampos” está repleto de cenas como estas. Em plena crise económica e humanitária, os atos de auto-preservação prevalecem em detrimento da compaixão e da partilha – um retrato mais do que realista.

IV
Orgulho e Inocência
Depois da morte da sua mãe, Seita vai até casa da sua tia. Ele permanece lá com Seita, apesar das acusações de não conseguir contribuir para o sustento do lar. A opressão aumenta lentamente e Seita fica saturado. Um dia, pega na sua irmã e vai viver para a margem de um rio, num pequeno refúgio. A primeira decisão orgulhosa que o levaria a uma queda inevitável. Isto porque ele é agora o encarregado da segurança e dieta de ambos. A curto prazo a tarefa revela-se viável, mas rapidamente torna-se impraticável.
O apetite da sua irmã transforma-se em fome, que por sua vez remete para um estado faminto, debilitado, esmorecido. Se podia ter voltado para casa da sua tia? Provavelmente sim, seria recebido. A falha humana está presente no filme desde o seu contexto até aos aspetos centrais de Seita, fruto de uma inocência sumida e da convocatória de uma maturidade precoce.
V
Não Esqueçamos os Pirilampos Caídos
Numa das sequências mais alegres e gloriosas do filme, uma série de pirilampos notívagos iluminam o refúgio à margem do rio. As notas musicais acrescentam uma atmosfera relaxante e de deslumbre. Os irmãos recostam-se, maravilhados com o espetáculo reluzente. Na manhã seguinte, Seita depara-se com Setsuko a escavar a terra com as mãos e a enterrar os pirilampos que tinham enriquecido a noite. Em justaposição, vemos soldados a apilhar cidadãos mortos numa grande cova. A cena termina com a jovem menina a perguntar ao irmão: “Porquê que os pirilampos têm de morrer tão cedo?“.
“O Túmulo dos Pirilampos” oferece-nos a oportunidade de assistir a fragmentos de vidas que foram roubadas cedo demais. É uma obra complexa, compacta e escrita com uma honestidade excepcional. A última imagem, onde vemos os espíritos dos protagonistas no topo de uma colina a mirar a cidade de Tóquio nos tempos modernos, é o culminar da mensagem que Isao Takahata pretende passar: Não esqueçamos os pirilampos caídos, pois é a memória dos mesmos que concede a perspetiva necessária para que não existam mais Seitas e Setsukos.

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