OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Chris nem era a corruptela do nome Christiano, Christian ou similar. Chris na verdade se chamava Geraldo. Geraldo! Geraldo?! Como os seus pais havia lhe dado esse nome, era a questão posta por ele, que desde cedo teve problemas com sua identidade. Discriminado no bairro onde sua mãe era empregada doméstica, quando brincava com os filhos dos patrões sentia olhares de reprovação, até uma constatação simples e factual: fora chamado de negro e sujo. Revoltou-se. Revolta íntima. Mas, antes mesmo de se resignar, resolveu se rebelar. A sociedade acabara de criar um marginal. Menino faceiro, evitava emoções devido ao autoritarismo do pai e ao catolicismo da mãe.

Foi se fechando em seu mundo e criando uma personalidade alternativa. Descobriu sua sexualidade adolescente. Não gostava do contato com meninas e experimentou oferecer sexo oral aos coleguinhas, e se satisfez. Satisfazia os coleguinhas. Enrustido a princípio, por causa das convenções e da mãe ainda viva, soltou a franga aos 22, com o falecimento de Dona Augusta. Apegou-se ao movimento de consciência negra e encontrou sentido racional para a sua vida despropositada. Militante, sabia tudo de Zumbi dos Palmares, tráfico negreiro, Malcolm X, Martin Luther King e todos os demais ativistas, inclusive o movimento Pantera Negra. Melhorou como intelectual, esse era o ponto de fuga de uma vida cada dia mais devassa, inconsequente. Temia criar vínculos. Amar. Ser amado. Mas catapultou a insistência de Eduardo, que desejava um namoro sério. Agora possuía vida tripla: militante, devasso nas horas vagas e namorado de Eduardo.

Martin Luther King Jr.
Malcolm X

Encontremos agora Chris e Eduardo no Pátio Savassi, de mãos dadas e Chris lascando eventuais beijos na boca do parceiro. Para chocar mesmo, pois via as reações disfarçadas de quem não aceitava as diferenças. Como queria causar, insistia nas demonstrações públicas de carinho, ao que Eduardo resistia, pedindo a ele para se controlar. Uma oportunidade e tanto para discutirem a relação, lavando a roupa suja em público mesmo. Eduardo falava baixo, pedia discrição e sentia vergonha pela conversa. Chris falava alto, exercia o seu direito à livre expressão, proclamando: “Sabe, amor? Nós, negros, fomos calados desde os navios negreiros. Silenciados. Abusados. Os camburões da polícia hoje são os navios negreiros de outrora. Só negros se ferram. E ademais, gays como nós são discriminados, quer que eu fale baixo? Pois vai: somos humilhados e discriminados por quem não aceita a diferença” – o tom de voz ia subindo.

Uma das atendentes, meio constrangida, pediu discrição. Foi a deixa para Chris explodir:

— Discrição uma ova! Livraria de riquinhos e para riquinhos. Hipócritas!

Eduardo tentava contê-lo, o gerente se aproximou e tentou amenizar. O difícil era fazer Chris se calar:

— Desde cedo somos tratados como lixo, como ninguém. Só pelo facto de ser homossexual? Sou mesmo! – sua voz ia aumentando e ficando histérica – Sou mesmo e com muito gosto. – E para atrair mais a atenção de pessoas que pararam na porta da livraria, berrou: “Aguento duas rolas ao mesmo tempo, talvez três, e o faço por gosto”.

Eduardo ficou dividido. Entre o ódio da exclamação e o barraco a que estava sendo submetido. Dois seguranças, um negro e um branco, foram solicitados para intervir e, educadamente, tentaram conversar. Em vão. A deixa foi Chris passar o braço direito por uma banca de livros e derrubá-la. Foi a gota d’água.  Os seguranças o imobilizaram, Eduardo tentou acompanhar e foi solenemente jogado ao chão, de lado. Muito tumulto e os berros do detido:

— Seus merdas! Exercem sobre mim a violência, pois sou negro.

— Também sou negro, idiota! – esclareceu um dos seguranças.

— Seu merda! Exerce sobre mim a violência pelo fato de eu ser gay.

— Meu amigo branco é gay também – riu e brincou um dos seguranças.

— Para com essa brincadeira! – o outro segurança interveio.

Levaram Chris para a saída e, aos poucos, sentindo que este se acalmava, sugeriram que fosse embora naquele dia e que voltasse num outro, mais calmo. Chris já tinha chamado a atenção, já tinha brigado, já se desentendera com Eduardo. Acalmou-se aos poucos e foi embora, deixando para trás o namorado e livrando-se, naquela mesma noite, para uma orgia com mais dois amigos.

Eduardo, constrangido, não se cansava de se desculpar com as atendentes, com o gerente, com os seguranças que retornaram. Evitou a tentação de correr atrás de Chris;  conhecia-o e sabia que, nesses momentos, o melhor a ser feito era deixá-lo refletir sobre suas atitudes. Saiu de fininho e, quando ganhou as ruas, foi com um misto de alívio e liberdade. Havia escapado de uma situação vexatória e respirou os ares da normalidade. Amava Chris! Dedicara a ele o seu corpo e afeição. Por que ele havia dito aquilo, acerca das três rolas? Que vulgar! Pegou o celular, discou para o namorado e… Caixa postal. Resignou-se. Caminhou até a Avenida Afonso Pena e refugiou-se no Parque Municipal, em frente a uma lagoa com patos. Distraiu-se.

Quando estava perto de uma casa de show, que sempre mudava de nome (o atual era Chevrolet Hall), Chris trombou com Gregório. Cumprimentaram-se. Chris perguntou:

— Olá, escritor! Saindo do trabalho?

— Sim. Como vai, Chris?

— Acabo de sair de uma briga feia. – caprichava no gestual.

— Não parece. O que foi?

— Fui expulso do shopping. Comportamento inadequado. Excesso de carinho, sei lá.

— Ah, sei – notório não perceber a cara de enfado de Gregório.

— Não acredita?

— Acredito. Pode crer que acredito.

— Aqui, está sendo irónico. Olhou para mim aquela palestra na sua escola? Quero me apresentar lá.

— Não faço a programação cultural da escola. Já te disse mais de uma vez, vá à direção e faça a proposta.

— Isso é porque vocês são elitistas. Colégio para brancos riquinhos.

Gregório se impacientou:

— Amigo, você mesmo se desmerece! Nunca te falei que a escola não estaria aberta à sua proposta, mas acredite, não faço a programação de nada lá. Sou um funcionário apenas.

— Ah, e falar nisso: vai fazer a palestra mesmo no dia da Parada?

— Conversei com Márcia. Estamos acertando os detalhes.

Os transeuntes passavam e, quando observaram os interlocutores, estavam encostados à grade da casa de shows.

— Alguma coisa no seu livro que fale de nós, negros?

— Olha, você perguntando assim, me fez pensar. Sinceramente, acho que não. Mas sabe porquê? Talvez pelo facto de não diferenciar cor ou etnia ou opção sexual, me entenda, por favor.

— Como assim?

— Nos meus artigos e ensaios, busco mais a crítica de costumes. Não me atenho a segregações, entende?

— Deixe ver se eu entendi. Então, quando você conversa comigo agora, não sabe que eu sou gay e negro, é isso?

— Sim, cristalino como água. Pura e simplesmente.

— Lorota.

— E por que eu faria diferente?

— Você é hipócrita! Sabe que é branco, hetero e quando conversa comigo tenta disfarçar o seu ar superior.

— Nada disso, meu jovem. Sou branco? Sim. Talvez amorenado. Na Finlândia seria tido como moreno. Sou hetero? Sim. Mas isso é minha opção sexual. Não vejo porque devo destratá-lo ou me sentir superior a você. Você está se desmerecendo.

— Conversa fiada.

— Fique com a sua impressão. Mas fico feliz de ter tido a oportunidade de, ao falar contigo, sentir as minhas convicções sobre o assunto. Uma ideia que pretendo desenvolver em breve e que faz alguma diferença.

— Qual?

— A diferença de pensamentos pode resultar em duas possibilidades: ou você pensa a coisa de um modo amplo e, para tal produz uma filosofia, ou se limita a enxergar as coisas de um ângulo apenas e professa uma ideologia.

— O que isso tem a ver?

— A diferença entre filósofo e ideólogo.

— Ah tá! Então você está no cume do Olimpo julgando nós, os pobres mortais – deu um faniquito e colocou as mãos na cintura.

— Nada disso. Estou no meio da coisa. Só tentando compreender.

— Essa conversa de tolerância é uma baita hipocrisia.

— Quando o ideal seria apenas não tolerar. Tolerar significa suportar. Como se a ideia fosse a de que devemos suportar o nosso semelhante. Aceitar pura e simplesmente. Sem rótulos. Sem discriminações, entende?

— Ideal puro. Vocês filósofos são uns idealistas.

— Então, mas você também tem um ideal. Pretende dar suas palestras acerca da diversidade, isso é um ideal.

— Mas a merda é que você se sente superior, não é?

— Não mesmo. Juro.

— O filósofo racional que pensa o mundo – fez a pose do Pensador de Rodin.

— Muito longe disso.

— Mas então, o que acha da Parada Gay?

— Penso ser um evento importante. Como falei a Márcia estou estudando para um eventual debate, oficina, mesa-redonda, ou seja, o que ela acha que pode contribuir.

— Falará sobre a violência contra os homossexuais negros?

— Quem sabe falarei sobre a violência de forma geral? Já refletiu sobre isso?

E conversaram ainda por uns cinco minutos, falando de generalidades e, quando se despediram, Gregório envolveu-se completamente com as descobertas daquele dia. Revelava-se o espírito da cooperação, do entendimento, da voz calma e segura que poderia trazer mais luz a muitas das discussões. Refletiu sobre o que acabara de falar: a diferença entre ideólogo e filósofo. Enquanto um buscava o entendimento amplo, o outro ficava limitado a crenças paralisantes. Exemplos de ideólogo não faltavam: o sujeito que pertencia a um partido político e que simplesmente detratava os pertencentes a outros. Nas manifestações de rua observou muito isso; quantas vezes, da janela do seu apartamento, observara feições furiosas que mais se assemelhavam a mentes nazistas caçando judeus nos becos. E quando presenciou o desejo de matar de bandos que se digladiavam em plena Savassi, com paus, pedras, armas de fogo e similares numa manhã de domingo? Os partidários do Atlético e do Cruzeiro marcaram uma briga pelas redes sociais e o cenário todo, quando Gregório teve que se refugiar em uma farmácia, que teve os vidros quebrados, e avançaram desejando matar em cenas que não ficavam nada a dever ao filme de ScorseseGangues de Nova Iorque“. Ideólogos do sexo! Puta que pariu! “Pensando bem, não vou fazer porra de palestra nenhuma. Estou cansado dessas igrejinhas limitantes de credo e opções. Se vejo o homem em sua amplitude, por que devo me limitar a etnias, crenças e credos? O mundo está em escombros, pressinto isso, e a causa disso tudo é a falta de reflexão nas pessoas. Modo geral, as pessoas nem esperam ler um post e já saem divergindo, criticando, xingando. Não lêem um livro, têm preguiça, são acomodadas e exigentes. A coisa toda está uma merda e eu com isso? Meu ato de resistência será o isolamento. Vou ler livros clássicos e sairei ganhando. A verdade está lá”. Ia fazendo digressões quando foi surpreendido por um jovem que havia ido ao seu lançamento. Esquecera o nome dele, mas cumprimentou-o:

— Tudo bem?

— Tudo. Li alguns ensaios teus no livro.

— Ah, que bom! Valeu o investimento?

— Não é um Proust, mas valeu!

Gregório riu. Que bom que a vida ainda reservava pessoas finas e que gostavam de literatura. O jovem era típico: cabelos encaracolados um tanto grandes, sem corte definido, óculos de grau e roupas largadas. Uma bolsa de lona atravessada no peito e um livro na mão. Pediu um tempinho. Gregório assentiu. Buscaram um café ali perto, pegaram uma água e Arthur começou:

— Apresentando-me formalmente, meu nome é Arthur!

— Claro, já sabia disso – mentiu Gregório. Autografei para você. Acho que gostaria de estar presente numa aula que dei há pouco.

— É mesmo?

— Sim. Falávamos de Cervantes, Balzac, Dostoievski, Kafka e Flaubert numa mesma aula.

— Que bacana! Gostaria mesmo.

— Mas então, é tipo uma fuga, permita-me dizer, desse mundinho de merda.

— Também penso assim – riu Arthur. Acho que nasci na época errada, queria ter nascido na época em que não tínhamos eletricidades, computadores, televisões, rádios, enfim, nenhuma forma de distração que atrapalhasse o prazer da leitura, da boa conversa, do aprendizado.

— Você está muito jovem para estar desesperançado.

— Falo sério! Por que as pessoas estão tão fúteis, ultimamente?

— Talvez por conta das distrações, como você mesmo falou. Talvez pela necessidade de aprovação. Talvez por “n” motivos e talvez por coisas as quais não compreendemos.

— Isso é certo. Sabe, sou discriminado no meu curso de Letras.

— É mesmo?

— É. Falam que eu quero aparecer porque leio muito.

— E o engraçado é que, num curso de letras, pressupõe-se que a pessoa deva ter afeição pela leitura…

— Não é uma merda? Vá entender!

Gregório sabia que era. Lembrava-se de sua turma de formação na faculdade. Composta por quatro intelectuais que especulavam e investigavam a coisa a sério, quase sessenta por cento composta por alunos que levavam o curso nas coxas, à espera apenas do diploma, fazendo da faculdade um escolão, dos artigos rasos apresentados nas semanas de filosofia ao longo do seu tempo de formação, de professores acomodados e que fumavam em sala de aula, desestimulados do ensino e da pesquisa por conta de um emprego vitalício, onde não tinham que prestar contas a ninguém, a xerox de trechos de grandes obras dos filósofos e das provas idiotas oferecidas pela maioria dos professores. Sim, Gregório sabia disso tudo. Não queria desestimular Arthur, mas se fosse sincero diria verdadeiramente que aquilo tudo era uma merda e que ele fosse se acostumando com isso. Mas sabia que o jovem encontraria remédio visitando os palácios de ministros e duques e generais e governantes nas obras de Balzac; que entenderia a condição humana, louca mesmo, lendo “O Alienista” de Machado de Assis; que se divertiria com o caso de adultério em “O Vermelho E O Negro“, de Stendhal; que purgaria suas emoções e culpas lendo “Crime E Castigo” de Dostoievski; que se deleitaria com a quantidade de pormenores em “Em Busca Do Tempo Perdido“, de Proust; que se irritaria com o excesso de burocracia no “O Processo“, de Kafka e muitas outras leituras que alimentariam a sua alma. Gregório percebia que faltava às pessoas de hoje vitaminas que só eram extraídas de grandes obras da humanidade. Fez ver a Arthur que se eram modernos hoje, deviam tudo a escritores, pensadores e filósofos que desenvolveram suas teorias há tempos. Naquele dia estranho de conversas conflitantes, na insignificância intelectual do militante negro gay e do contraste na conversa com aquele jovem, lembrou-se de Carla. Perguntou:

— Desculpe perguntar, Arthur: tem quantos anos?

— 22.

— Acho que gostaria de conhecer uma pessoa.

— Quem?

— Carla. Uma de minhas melhores alunas. Admiro-a demais. Fã de Nietzsche, manda muito bem em suas redações.

— Sou tímido, mas quem sabe?

— Ela também é. Mas é uma garota superinteligente. Tem uma cabeça desenvolvida. Esteve no lançamento.

— Não foi aquela que filma tudo, né?

— Não.

— Que adolescente idiota, não?

Gregório ateve-se a não comentar. Mas compartilhava do pensamento. Limitou-se a dizer:

— Perde muito tempo. A vida, para dizer a verdade. Mas, bem, foi a mocinha para a qual autografei um livro, além do seu.

— A de cabelo preto e olhos pretos?

— Exato. Essa mesma.

— Ela é bonita!

— E inteligente. Vou pegar o seu telefone e e-mail. Vou pedir para ela entrar em contato. Ela é muito sistemática e geniosa. Mas é uma conversa muito agradável.

— Parece ser.

E Arthur sugeriu ao professor criarem um grupo de leitura, um café filosófico, ou algum evento literário que promovesse encontros de pessoas afeitas ao hábito. Gregório, assomado com tantos e tantos projetos, não disse nem sim nem não, ficou de ver e deixou a cargo de Arthur a sequência nessa tratativa. Beberam água, café e a seguir se despediram.

Livre. Livre. Livre para curtir a sua libertinagem. Não ligaria mais o telefone naquela noite. Não queria conversar com Eduardo. Não naquela noite. Na lista de contatos de outro telefone, secreto, ligou para transas fáceis. Arrumou logo dois que compartilhavam sacanagens e afins. Recebeu-os em seu apartamento e foi drogado, sodomizado e humilhado. Gostava dessa sensação. Da sensação de se sentir um lixo com tantas e tantas humilhações. Obrigado a engolir sémen. Sentindo-se tão nojento e sujo assim, era a oportunidade para, no dia seguinte, lavar-se de corpo e alma e dali buscar refúgio nas palavras, nos braços e no afeto de Eduardo. Demorou-se no chuveiro.

Marcelo Pereira Rodrigues

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