Um dos marcos da década de 1950, “The Barefoot Contessa” (“A Condessa Descalça“), é um filme “clássico” de Hollywood onde temos dois pesos pesados da história da sétima arte, um já em final de carreira, outro no apogeu. Falo, no primeiro caso, de Humphrey Bogart, um ator já com inúmeros sucessos na bagagem, e que viria a falecer três anos após a estreia deste filme. Do outro lado, temos a jovem Ava Gardner com apenas 32 anos, também já com uma reputação bastante respeitável entre os cineastas.
Esta película é realizada pelo aclamado Joseph L. Mankiewicz, o homem responsável por filmes como “Eva” (1950), “Júlio César” (1953) ou “Cleópatra” (1963). Vindo de um meio onde os épicos eram moda, os romances mais “simples” também já haviam muito protagonismo, pois não esqueçamos que “Casablanca” é um filme de 1942. Em “A Condessa Descalça”, o protagonismo é do sexo feminino, e como não podia deixar de ser, pertence a uma criatura mística e diferente.
Como podemos observar em muitas das grandes obras deste período da história do cinema, uma boa narrativa, em conjunto com actores-chave, eram uma receita de sucesso garantida. Tanto Eva Gardner como Humphrey Bogart são duas figuras charmosas e icónicas, garantindo desde já uma forte presença no grande ecrã. Gardner é Maria Vargas, uma dançarina de flamenco capaz de encantar todos os que a observam. Já Bogart é Harry Dawes, um cineasta contratado por Kirk Edwards (Warren Stevens) para o ajudar na sua primeira produção cinematográfica.

Tal como Dawes conta, estes estavam em Madrid não à procura de talento, mas sim de “uma cara nova”. Uma grande parte da narrativa é contada através de um discurso indirecto, proferido por personagens activas na história, todas a falar da mesma pessoa: Maria Vargas. Esta última impressiona dos “caçadores” de talentos, motivando uma investida negocial, tentando convencer Maria que esta pode muito bem vir a ser a próxima estrela de Hollywood. Esta nega o primeiro convite, mas acabaria mesmo por viajar até à América.
Tal só foi possível através da postura de Harry Dawes, uma espécie de figura paternal e experiente, que para Maria Vargas era um escudo de protecção para o que se avizinhava. Desde cedo, percebemos que Maria é uma figura algo imatura e inocente, apesar do seu elevado grau de confiança para com a sua imagem e talento.
Esta não tardou em ser a mulher mais falada e fotografada em Beverly Hills. Contudo, a sua simplicidade é uma constante ao longo do filme, tal como é demonstrado em cenas mais à frente do filme (ex: preferir dançar flamenco num acampamento cigano ao invés de estar rodeada de diamantes e luxos supérfluos).
Uma característica muito própria em Maria era a sua falta de apego aos sapatos. Apesar de estes serem essenciais na sua dança, andar descalça era uma das melhores sensações para a agora atriz, pois esta dizia que gostava “de sentir a terra“, revelando assim um forte apego às “coisas simples da vida”. Contudo, com o sucesso vêm outras coisas, e uma delas, são os ditos “ciclos restritos”.
Após o sucesso com Kirk Edwards, entra em cena Alberto Bravano (Marius Goring), um dos homens mais ricos da América do Sul, decidido a dar uma nova vida a Maria. Esta nova vida consistia em viver a vida “à grande”, usufruindo da fortuna de Bravano, na companhia da alta sociedade da Riviera Francesa (Côte d’Azur) e em passeios de iate.
“Algumas delas são felizes porque são bonitas, outras têm de ser felizes porque não são nada a não ser ricas“
Temos que ter em conta que nesta etapa da história da sociedade moderna, o mundo era maioritariamente dominado pelos homens, e a mulher era vista como uma espécie de “troféu”. Contudo, não era o caso de Harry Dawes, que esteve sempre presente na vida de Maria e sempre a tratou “como uma filha”.
Este continuava a contar a história da madrilena, alternado o papel de narrador com os outros homens presentes na vida da actriz. É aqui que entra o Conde Vincenzo Torlato-Favrini (Rossano Brazzi), um galã respeitado por toda a alta sociedade. Vincenzo, e a sua irmã Eleanora (Valentina Cortese), eram os últimos na linhagem de uma família pertencente à nobreza italiana.
A forma como este conquista Maria é romântica, mas ao mesmo tempo básica. No casino onde esta e Bravano estavam, Vargas decide dar o dinheiro à socapa a um cigano (com quem tinha dançado), levando o milionário a uma atitude pouco cordial. Aqui verificamos o lado mais solidário de Maria. No entanto, ao assistir a toda esta situação, Vincenzo rapidamente intervém e leva Maria com ele. Estes apaixonam-se um pelo outro, mas o amor por vezes traz desfechos tão negros quanto a sua beleza.

Toda esta história é contada, “silenciosamente”, no funeral chovoso de Maria Vargas. Harry, como principal narrador, é quem mais parece conhecer a sua amiga, estabelecendo a relação mais intensa na vida da madrilena, mas sempre sem ter havido qualquer tipo de “acontecimentos” além amizade.
A narrativa evolui por camadas, dividindo a história da personagem principal em quatro partes: a dançarina de flamenco, a atriz de Hollywood, a mulher do homem rico, e por fim, a mulher apaixonada.
“A Condessa Descalça”, escrito também por Joseph L. Mankiewicz, é um filme seguro, que não prima por nenhuma atuação fora-de-série. Tal como mencionei no início, os cabeças de cartaz falam por si só, mas com certeza haverão papeis de maior destaque nas suas carreiras. A chave, a meu ver, está na maleabilidade com que a história é contada, imprimindo-lhe constantemente ritmo e sem nunca abandonar o foco principal: a misteriosa vida de Maria Vargas.
É a aposta na mística de uma só personagem, sem arriscar noutros campos, pois pouco ou nada se sabe do segundo destaque do filme: Harry. São duas horas muito bem empregues, mas entre os clássicos, fica a faltar qualquer coisa.