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“A grande partida biológica que nos pregam é que nos tornamos íntimos antes de sabermos alguma coisa acerca da outra pessoa.”


David Kepesh, “O Animal Moribundo”

Esta é uma das várias frases que sublinhei no romance psicológico “O Animal Moribundo”, do escritor norte-americano Philip Roth. A terceira parte de uma trilogia solta que conta as aventuras e desventuras sexualmente produtivas da personagem David Kepesh. Tudo começou em 1972, com o romance kafkianoThe Breast“, evoluiu em 1977 para “O Professor de Desejo” e culminou em 2001 – agora com um protagonista sexagenário, crítico cultural da TV e ainda um prestigiado professor universitário.

A caminhar a passos largos para o inverno da sua vida, Kepesh é rasteirado por Roth quando este lhe introduz a cubana Consuela Castillo, sua aluna e beldade de 24 anos. Numa primeira instância (como acontece quase sempre), é a superfície que lhe atiça os sentidos. Contudo, com relativa gradação, também o coração começa a amolecer por ela. Instala-se, inclusive, um sentimento atípico para o académico: ciúme corrosivo.

A narrativa ocupa-se, portanto, da relação libertina dos amantes, com o desejo no centro das interações e a arte como lubrificante. Apesar de Kepesh encarar as conversas eruditas como um meio civilizado para atingir um grande fim. Desfecho em que, ironicamente, também se preza o bom uso da língua. Esta ânsia educada é fruto da condição atual do protagonista: um homem emancipado pela revolução cultural e sexual dos anos 60, que deu origem, entre outros prazeres, a “uma geração de surpreendentes adeptos do felácio.

O romancista norte-americano Philip Milton Roth

Porém, um dos aspetos mais fascinantes da obra é a dedicação às descrições do corpo de Consuela – em particular os seus seios. São de uma luxúria assentida pelo próprio Eros. Comunicam o estado enfeitiçado em que Kepesh se encontra. Esta admiração, quase devoção, é o ponto de partida para Roth discursar em breves blocos sobre temas como o casamento, a beleza, a velhice, e, enfim, a caducidade de existir. Trata não só daquela morte, mas também da morte da beleza. Coisa da mais pura desgraça. Tudo num pacote reflexivo, divertido e bastante estimulante.

Não se limita aos fatores carnais e psicológicos das ocorrências, como também elabora uma breve revisão histórica da contracultura norte-americana, que fortaleceu a noção de sexo recreativo (alicerçado no advento de novos métodos contracetivos). Este período de grandes convulsões sociais impactou, radicalmente, a vida de Kepesh, cuja relação matrimonial e parental ficaram para quarto ou quinto plano.

Dos costumes ao prazer, da liberdade à tragédia irónica, “O Animal Moribundo” é um romance perfumado com decadência. A excitação das primeiras páginas pouco se assemelha à enfermidade das últimas. O fatalismo das entrelinhas adquire de súbito uma forma nodular, deixando no seu lugar uma profunda cicatriz que é tão carnal quão emocional.

Assim é a excelente literatura: sinuosa, perspicaz, marcante. E, neste caso, preenchida do princípio ao fim com um implacável erotismo.

Bernardo Freire

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