A realização de uma pesquisa académica é um misto de interesse do aluno com o espírito livre do orientador(a) – claro que podem haver espíritos dogmáticos, pusilânimes, mas para minha sorte isso não ocorreu neste artigo que se segue.
Primeiramente, é mister lembrar (e com carinho) a Universidade Federal de São João del-Rey, no Brasil, com base numa biblioteca com vários títulos em alemão, passando pela curadoria de Filosofia e o espírito livre da professora Maria José Netto Andrade, que nos permitia inclusive os “erros” no labor das pesquisas. Num congresso filosófico, apresentei um estudo acerca da obra literária “O Anticristo“. Recentemente, publiquei um artigo sobre este livro aqui no Barrete. Ainda na universidade, não me dei por satisfeito e resolvi fazer uma genealogia de muitas das obras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900).
Desta forma, li “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música“, “Assim Falava Zaratustra” (já escrevi um artigo aqui no Barrete sobre), “Ecce Homo“, “A Genealogia da Moral“, “A Gaia Ciência” e outros. A minha intenção era recuperar o valor de cada palavra ou termo, incitando meu interesse cada vez maior pela filologia. Queria estudar a correlação do aspeto religioso com a ideia moral, filosófica e ética acerca desta discussão.
No último período da minha formação académica, a brilhante Cláudia Braga, que ministrava a disciplina de Noções de História do Teatro, incentivou-me a desenvolver essa pesquisa de génese a qual eu houvera proposto inicialmente com “O Anticristo”. Mesmo fora da abordagem teatral, ela classificou o meu estudo à época como sendo um ótimo trabalho.

E foi com Fichte (1762-1814) que aprendi, isso na defesa da minha monografia de conclusão de curso, o conceito do ‘agir, agir’, que eticamente impulsiona o Ser enquanto tal para um deslocamento contínuo e incessante, onde cada projeto de pesquisa que se finda transforma-se imediatamente numa outra tese. O auxílio nesta fase de estudos foi do filósofo José Maurício de Carvalho.
Portanto, dedico a estes professores o conteúdo deste artigo, daquilo que em breve será certamente o reiniciar de uma pesquisa. Mas, como aprendi com Nietzsche: “O conhecimento mata o agir, o agir requer que se esteja envolto no véu da ilusão“. E mesmo com Nietzsche, e longe da guarda dos meus professores da universidade, “é chegada a hora de me tornar mestre, matando os meus antigos mestres”.
O Mundo Trágico na visão de Nietzsche
Uma exaltação à vida! Assim Nietzsche remete-nos à época trágica grega. Inspirado num primeiro momento pela obra “O Mundo como Vontade e Representação“, de Arthur Schopenhauer (1788-1860) e pela música de Richard Wagner (1813-1883), a qual ouço enquanto escrevo estas linhas, Nietzsche percorrerá um caminho de regresso à época trágica, relacionando e contrapondo os aspetos dionisíaco e apolíneo e problematizando a figura de Sócrates, que interpretará esse período com os seus juízos e valores, erroneamente, na visão de Nietzsche.
Na tragédia grega, Dionísio representa a beleza e a motivação do viver. Vivência essa que se relaciona com um traço marcante de aniquilamento. Procurando uma compreensão filológica a respeito desse aniquilamento, observa Nietzsche em Dionísio a “desmedida ébria, o êxtase destrutivo“, nas palavras de Manoel da Costa Pinto.
No período trágico, não existe ainda a reflexão enquanto trabalho filosófico, sendo que o refúgio é a arte. A representação induz ao jogo, onde a regra principal é valorizar a aparência. Nietzsche, em “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música”, escreve:
“… a arte, só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da existência em representações com os quais se pode viver: o sublime como domesticação artística do susto e o cómico como alívio artístico do nojo diante do absurdo. O coro de sátiros do ditirambo é o ato de salvação da arte grega; no mundo intermediário desses acompanhantes de Dionísio esgotavam-se as crises descritas acima.“
Uma forma marcante de manifestação artística encontra-se em Dionísio e nos seus rituais pagãos. Os cultos a Dionísio eram festas extravagantes, desmedidas. Os seus séquitos auto realizavam-se na perda da individualidade, para, num estado de transe, encontrarem-se na representação, na aparência que combatia a vida nua e crua. Esse sentimento exacerbado remete o homem ao drama, compreendido numa escala maior pelo coro da música.

Baco é o deus romano equivalente ao grego Dionísio, que representa também o vinho, a ebriedade, e os excessos, especialmente sexuais. Já Dionísio é também representativo do teatro e dos rituais religiosos.
Mas já na época de Dionísio ocorre paralelamente um movimento que procura formatar a arte e enquadrá-la numa esfera que culminará no racionalismo futuro. Eurípedes, Sófocles e mais detidamente Apolo contrapõem-se a Dionísio, sendo Apolo um grande definidor na arte da escultura. Encontra-se aí a medida, a forma, num primeiro momento de submissão.
Nietzsche, enfeitiçado pela música de Wagner, entende que no período trágico a vontade representava o valor supremo. O aparente, aliado à paixão, era o movente e destinava-se assim a um gozo da vida. Um valor supremo. Talvez este termo seja uma expressão dúbia. Não valores supremos numa compreensão metafísica platónica cristianizada, pois toda a estrutura da filosofia está neste termo, porém o mesmo é, para Nietzsche, uma forma de decadência. E é por isso que ele se expressa com a necessidade de transvaloração dos valores. O mais fascinante em Nietzsche é que ele recupera o interesse numa época tão remota.
Ao tratar dessa perspetiva, ele procura não somente a trajetória que culminará na sua época atual, mas prega o próprio caminho de volta. E a derradeira expressão da sua genialidade é que ele não possui apenas uma visão idealista desse retorno. Nietzsche nunca foi um idealista. O seu artifício em procurar a época trágica é a forma cruel de destruir a metafísica e os seus “valores supremos”.
O problema causado por Sócrates
No início da obra “Crepúsculo dos Ídolos ou Como Filosofar com o Martelo“, Nietzsche ironiza a figura de Sócrates:
“A mim mesmo, essa irreverência de pensar que os grandes sábios são tipos de declínio ocorreu pela primeira vez precisamente num caso em que mais fortemente o preconceito erudito se contrapõe a ela: reconheci Sócrates e Platão como sintomas de caducidade, como instrumentos da dissolução grega, como pseudo gregos, como anti-gregos (“Nascimento da Tragédia”, 1872).
Aqueles consensus sapientium – isto eu compreendia cada vez melhor – é o que menos prova que tinham razão naquilo sobre o que concordavam: prova, muito mais, que eles próprios, esses sábios dos sábios, concordavam fisiologicamente em algum ponto para, de igual maneira, se colocarem negativamente ante a vida, e terem de se colocar assim. Juízos, juízos de valor sobre a vida, pró ou contra, nunca podem, em definitivo, ser verdadeiros, só têm valor como sintomas, só como sintomas entram em consideração – em si tais juízos são estupidezes“.
A soberba aparição de Sócrates é já um indício de que os indivíduos não suportam as suas próprias existências. Sistemas dualísticos, jargão em dois, que remetem a um mundo aparente e a um mundo essencial. Sócrates inventou a metafísica, dirá Nietzsche e passou sabiamente a querer formatar uma época anterior. “O homem deve extirpar as paixões”; “deve renunciar ao prazer”; “deve buscar a coisa-em-si”; “deve”; “deve”; “deve” (repetição intencional)… Essa procura doentia pela essência das coisas é sinal de aniquilamento.
Não o aniquilamento que se dá, como no período dionisíaco, na exacerbação do viver. Com Sócrates, esse aniquilamento encontra-se quando a ascese remete o indivíduo ao nada, ao próprio processo de mortificação. Os valores edificados, na visão de Nietzsche, devem ser jogados por terra, pois são apenas fantasmas de um teatro sem público.
Essa contraposição é importante e permeia todo o processo literário-filosófico de Nietzsche. Nas suas obras, ele criticará a ideia dos valores como sendo algo eterno. Tudo não passa de convenção, e o que é pior, de criação. “Criado” pelo daímon de Sócrates, imputando a este uma busca incessante da verdade, com a sua perambulação questionadora a respeito dos ofícios de cada um. Essa modéstia sapiência transforma-se em arrogância galopante. Na compreensão socrática da vida errática levada por quem se insere no mundo concreto, o ideal é adentrar o Além-mundo, o além-do-homem, fuga derradeira para acomodar os espíritos fracos e medíocres.

Quando Sócrates compreende que as pessoas estavam a viver por instintos, deixando assim de possuírem razão e serem criticadas por isso, é a vez de Nietzsche se enfurecer. Pois afinal tudo o que o alemão louva é exatamente o contrário, o instinto exacerbado, fora dos limites. Tudo o que será criado posteriormente, em termos de filosofia, é uma refutação à época trágica, entendida como não necessária, contingente. Como se o viver na aparência fosse apenas um estágio para uma vida eterna. Nietzsche critica essa ideia de eternidade, relacionando-a com a doutrina cristã, quando afirma que a humanidade erra grosseiramente em eternizar um período datado de dois mil anos.
Consequências diretas da contraposição dionisíaca e socrática
O trabalho realizado por Nietzsche inicia-se nitidamente em “O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música”. Compreendendo o passado, ele avalia o presente. Sócrates não passa de um galho na grande árvore metafísica: caule oco, sem frutos. A metafísica inventada pelo “caçador de ratos de Atenas”. A dualidade em tudo. A aparência perdendo o seu significado e valor pela suprema razão, o “em-si”. O extramundano. A criação perfeita para a legitimação da moral dos escravos, adaptada aos moldes do cristianismo.
A contraposição a isso remete a Dionísio. O que representaria um valor finalístico para Nietzsche? Bem, a arte. Compreendida na sua aparência, a arte é a forma mais bela e que melhor se adapta à condição essencial do homem. Essa forma libertadora dá vitalidade ao viver, caracterizando-se num pulsar latente. É a autêntica vida, havendo uma unidade entre esta última e o pensamento.
Essa contraposição dionisíaca e socrática ultrapassa “O Nascimento da Tragédia” enquanto tal. Se olharmos ao longe, a arte dionisíaca é a suplantação da metafísica tradicional, anunciada com a “morte de Deus”. É a arte do Super Homem. Já Sócrates é tão somente um filósofo submisso e Nietzsche escandaliza-se com o êxito estrutural criado, de certa forma, por ele. Mas já se anuncia a hora dessa desconstrução, uma vez que a metafísica não atende aos ideais dos indivíduos. Assim sendo, essa forma de louvor e combate não se configura num passado remoto, mas torna-se atual na sua época como anúncio da libertação através da arte.
Certamente OBarrete, com o seu enunciado, já prenuncia estes novos tempos.
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