Reza a lenda de que na Pérsia antiga o Rei Xariar, depois de descobrir a traição da sua esposa com um servo, mandou matar os dois. Tomado pela ira, decidiu que todas as noites casar-se-ia com uma nova mulher e ordenaria a sua execução na manhã seguinte, para nunca mais ser traído. Três anos passaram até que Xerazade, a filha mais velha de um vizir, o equivalente a um primeiro-ministro, decide pôr termo à carnificina com um plano: contando histórias por dias, semanas, meses, anos, até completar mil e uma noites. Ao deixar a última sempre por terminar, a esbelta e engenhosa Xerazade aguçava a curiosidade do Rei e quebrou o rio de sangue.
Este é um exemplo clássico onde a frase “precisamos de histórias para sobreviver” adquire proporções literais. No mais recente filme do cineasta costa-marfinense Philippe Lacôte, “Night of the Kings” (tradução para o inglês), o enredo percorre um trilho semelhante. Assim como vincula a mensagem de uma forma igualmente impactante. Evocando um sentimento de realismo mágico em linha com a história do cinema de um país cujo trabalho em película tem sido indevidamente negligenciado.
O drama tem lugar na Costa do Marfim, em Abidjan, numa infame prisão chamada MACA, onde os guardas patrulham de forma periférica, quase como decoração. Pois dono e senhor da infraestrutura encarcerada é Blackbeard (Steve Tientcheu). Uma figura ao estilo de Hulk, mas doente e moribunda, que nomeia um recém-chegado (Bakary Koné) de “Roman” – um contador de histórias que terá de entreter uma multidão até ao raiar do dia através da arte da narração, sob pena de perder a vida. Um evento que acontece apenas quando a luz que é refletida pelo sol na lua apresenta tons de vermelho.

Anexos ao enredo principal, os bastidores enfocam na liderança e ordenação da cadeia depois da morte de Blackbeard. Como sempre acontece quando um regime monárquico está em vigor. Quem será o sucessor? O seu leal assistente Half-Mad (Jean Cyrille Digbeau) ou o seu rival, Lass (Abdoul Karim Konate)? O que realmente importa é que as manobras políticas nunca permitem que esqueçamos as circunstâncias. Roman está rodeado de centenas de criminosos num espaço confinado onde imperam as leis do mais forte. Este aspeto alimenta a insegurança e ferve a história de tensão, assim como torna a prisão num local palpável, imprevisível e temerário.
Propriedades que mantêm “Night of the Kings” com os pés no chão mesmo quando o conto de Roman catapulta a narrativa para terrenos mais férteis. O jovem apresenta um conto verídico com Zama King como protagonista, o conhecido líder do gang “microbe”, que tanto prejudicou Abidjan. Mas ao perceber que a história era curta e seca, atravessa rapidamente para o reino do fantástico. Engendra uma narrativa extensa em tempo e tragédias, que observamos através de flashbacks. Cenas que nos transportam para cenários mitológicos, com alguns toques surrealistas e efeitos visuais crus a pontuarem algumas das cenas mais misteriosas.

O filme resulta em pleno quando estamos a experienciar a história de Roman na prisão, com alguns dos espetadores a coreografar as ações principais do enredo (a certo ponto chegam a imitar um escorpião). Perde alguma coesão quando a criatividade bate asas, muito pela maneira dispersa e ineficaz de como as sequências são montadas. No entanto, é difícil não admirar a ambição e a dimensão deste projeto. Lacôte não só procura comentar sobre as condições sociopolíticas da Costa do Marfim, como também estimula a imaginação por meio da cultura oral africana.
Mais uma prova de que hoje, tal como há dez mil anos, as histórias salvam, divertem, inspiram e agregam valor à condição humana.
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