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Porque A Arte Somos Nós

Canção, neste desterro viverás, / Voz nua e descoberta, / Até que o tempo em eco te converta”: eis a epígrafe da peça “Que farei com este livro?”, que dá o mote para o está prestes a começar. Estes versos dão a ideia, correcta, de uma voz (livro, autor) que está prestes a ecoar pelo mundo, eternizando a sua intervenção (escrita) na história do mundo. No entanto, os mesmos afirmam que até isso acontecer, há que viver “neste desterro”, isto é, numa realidade um pouco distópica, contrária, precisamente, a esse enaltecimento poético posterior, ao momento em que a intenção literária atinge o seu propósito: o de mudar o mundo e de ficar na História.

A acção tem lugar em Almeirim e em Lisboa, entre 1570 e 1572, e começa após a chegada de Camões vindo da Índia e Moçambique. Camões está com bastante dificuldade em fazer a publicação da sua “obra máxima”, “Os Lusíadas” – “O que aqui trago é uma obra que escrevi em oitava rima sobre as navegações que fez D. Vasco da Gama à Índia e sobre os feitos dos portugueses desde o princípio” –, e como tal percorre as mais amplas instâncias de Portugal, com a sua forte motivação de imortalizar numa obra os seus anos de trabalho em exílio.

No entanto, chega num clima de desconfiança – “(…) tanto erra aquele que de todos se fia como aquele que de tudo se receia” – e desencontro de mentalidades por parte das grandes instituições de poder português, em que ninguém reconhece a pertinência e qualidade da sua obra e onde há uma clara falta de valores, como o patriotismo.

Desta forma, com uma forte vertente histórica e biográfica, Saramago foi capaz de criar uma obra (peça de teatro), “Que farei com este livro?”, que demonstra, claramente, a apatia e inércia que se instalou em Portugal após as suas grandes conquistas, sendo o escritor audaz na forma como constrói esta narrativa de contraste e complemento entre o Passado e o Presente, representando uma profunda, pertinente e intelectual reflexão sobre a importância e a função do escritor e sobre os seus mais pessoais desafios, vicissitudes e peripécias em momentos de exponencial decadência.

Importa frisar ainda, quanto ao enredo, que a acção está perante um clima de peste, sobretudo em Lisboa, mas também em Almeirim, o que vem degradar ainda mais a realidade objectiva e subjectiva (interior).

José Saramago

Outro aspecto, sem dúvida relevante, tem que ver com o forte carácter de censura de toda a obra, por parte da Inquisição, que limita as ambições e objectivos de Camões, deixado numa luta incessante contra essa estrutura, que pouco ou nada reconhece quem contribui para imortalizar as glórias e feitos de Portugal. Desta forma, Camões, em praticamente toda a obra, carrega consigo um sentimento profundo de injustiça. Concretamente, el-rei D. Sebastião demonstra uma indiferença atroz perante a possibilidade de publicação dos poemas de Camões, por não reconhecer, portanto, qualquer ganho representativo para a corte, mas o autor apela a que el-rei ouça os seus escritos, sem sucesso.

Assim, Luís de Camões é uma espécie de génio deslocado, sem posses, nem qualquer reconhecimento, visado negativamente pela apatia e inércia de uma corte sem qualquer sentido colectivo. Com isto, o autor, José Saramago, tem a ousadia de representar, precisamente, um poeta sem valorização externa, quase que implorando a publicação dos seus textos, e à parte da realidade em que está inserido, não se revendo nos ideais, ou nas falta dos mesmos.

Efectivamente, Camões considerava que o seu livro viria a ser um tributo de vitórias e conquistas portuguesas, de um passado cheio de orgulho, ambição, força e superioridade. No entanto, para a corte, esta obra não tem qualquer valor intrínseco, uma vez que, no seu entender, Portugal não pode viver eternamente das memórias do seu (vitorioso) Passado.

Assim, e ao tomar conhecimento do antagonismo e falta de sintonia que genuinamente tem para com a sua época, o próprio apercebe-se que se tornou um estrangeiro da sua própria pátria, suportado pelo facto de as grandes instâncias exigirem que “Os Lusíadas” seguissem, necessariamente, uma ideologia concreta e definida.

Desta forma, portanto, deve enaltecer-se aquele que é o grande mote de toda esta obra e, claramente, a mensagem mais profunda da narrativa, que se prende, objectivamente, através da ideia de um poeta iludido – por um Portugal previamente “imaginado” – com as glórias viagens e grandes conquistas, que quando se confronta com a realidade mais concreta, percebe que, após este período considerável em exílio, não é capaz de estabelecer um equilíbrio entre a realidade e o Portugal que imaginou, e daí advém, precisamente, a sua desilusão profunda para com o seu país e respectivas mentalidades.

Adaptação teatral da obra de Saramago / TNDM
Adaptação teatral da obra de Saramago / TNDM

Assim, “Que farei com este livro?” sugere uma espécie de metaficção historiográfica, que visa pôr em causa, ou talvez decifrar, a condição de verdade, analisando a validade da consciencialização histórica. Assim, não passa por refutar a história, invalidando-a, mas sim ampliar a própria concepção de uma história (oficial) com valor de verdade.

Neste caso, estamos perante a incompreensão de um poeta, completamente ignorado pelo seu tempo, perante a desagregação da sua pátria no contexto anterior ao desastre de Alcácer-Quibir (1578). Portanto, estamos a falar de um Portugal fragmentado, com a sua esfera de interesses muito incoerente – e que, na sua essência, caminha em direcções opostas.

Em suma, a peça de teatro “Que farei com este livro?” permite, não só que enverguemos por uma proposta de ficção amplamente realista, como são quase todas as obras do escritor José Saramago – tendo sempre a audácia e a perspicácia de contar uma história com um forte carácter histórico e simbólico –, mas também concede-nos a oportunidade de conhecer um Camões – mais uma vez, personificado numa personagem ficcional – à parte da sua obra, mas, claro, sempre enquadrado (sentimentalmente) com aquilo que escreve e defende, e esse é um dos aspectos mais interessantes de toda a obra.

“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”

– José Saramago

Tiago Ferreira

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